sábado, 14 de janeiro de 2017

A perigosíssima "moral espírita"


O "espiritismo", de tão deturpado, criou problemas sérios em sua doutrina. Distanciado das lições originais trazidas, com o mais duro trabalho, por Allan Kardec, o "espiritismo" de raiz roustanguista (que persiste, apesar de formalmente renegada nas últimas décadas pela fase dúbia), acentuou os retrocessos doutrinários e criou posturas bastante sombrias para um movimento que se dizia "moderno" e "futurista".

Uma dessas posturas é a "moral espírita". O caso da pediatra de Rondonópolis (MT), condenada por recusar-se a atender uma criança vítima de estupro não deve ser considerado caso isolado. A criança não foi atendida porque a médica atribuiu a ela "problemas espirituais" que supostamente carregava de "vidas passadas", supondo que a menina, de apenas sete anos, exerceu "energia sexual" que atraiu o tio ao impulso do estupro. Em outras palavras, a vítima sempre é "culpada".

Esse caso não é isolado porque o que a médica expressou foi um moralismo "espírita", que não deve ser encarado como uma postura "exagerada" de "algumas casas espíritas", como veem a fazer crer os palestrantes, sempre preocupados em jogar a culpa da deturpação da Doutrina Espírita a "peixes pequenos", quando os piores posicionamentos já vêm de "peixes grandes".

Francisco Cândido Xavier, por exemplo, é responsável por muitas dessas posturas. Sim, o tão querido Chico Xavier, ele não causou confusões porque era um cidadão bondoso que causou incômodo de muita gente. Ninguém se incomoda com pessoas de bem, se supostos bondosos causam confusão, é porque praticou também erros graves que não podem ser encarados como "coisinhas de nada".

Ele ampliou e radicalizou a deturpação da Doutrina Espírita, arrasando (sim, é esse o termo) o legado de Allan Kardec com igrejismo extremo. Sorte é que o Brasil vive de deslumbramento religioso e sucumbe fácil à armadilha da "fascinação", processo obsessivo já alertado nos tempos do pedagogo de Lyon e claramente descrito pelos postulados espíritas originais.

É esse processo de "fascinação", capaz de inserir imagens do deturpador Chico Xavier em imagens de paisagens floridas ou céus azuis de brancas nuvens, que cria a complacência fácil. Pelo prestígio religioso, se aceitam até os graves erros da deturpação espírita, difíceis de serem combatidos até por críticos pouco vigilantes, que, no meio do caminho, aliviam o teor das contestações por causa da "bondade".

Chico Xavier foi capaz de fazer julgamentos de valor muitíssimo severos e cruéis, apesar dele apelar tanto para que "ninguém julgasse quem quer que fosse". A covardia com que o "bondoso médium" fez ao atribuir a humildes (sim, humildes!) vítimas do incêndio de um circo em Niterói, no final de 1961, de terem sido romanos sanguinários, é de uma perversidade moralista sem tamanho.

Foi no livro Cartas e Crônicas, de 1966. E seria tolice atribuir esse juízo de valor a Humberto de Campos, que os "espíritas" mal disfarçam pelo tendencioso pseudônimo de "Irmão X". Isso porque está comprovado que, pelo estilo do "espírito Humberto" não condizer ao legado que o autor maranhense deixou em vida, Humberto de Campos não escreveu um til na obra supostamente mediúnica que carrega seu nome.

Isso significa que o juízo de valor partiu do próprio Chico Xavier, que foi capaz de defender a ditadura militar diante das câmeras de TV - e isso quando a ditadura estava bem mais repressiva e parte da direita que a apoiou migrou para a oposição - , contrariando a falsa imagem "progressista" que pegou até as esquerdas desprevenidas.

O moralismo "espírita" é bastante perigoso. Parte de uma interpretação leviana da existência da reencarnação e da vida espiritual, o que autoriza que se legitimem e se aceitem injustiças sociais diversas sob a desculpa de que "algo melhor" virá na "vida futura". Usa-se a "eternidade" como desculpa para se impor os sofrimentos longos do presente. Pela "libertação no além-túmulo", se aceita a fixação de algemas durante anos e anos, sem motivo consistente.

Daí as atribuições de "vidas passadas", que já foram alertadas por Allan Kardec em sua obra. O esquecimento de encarnações anteriores foi por ele analisado como forma de evitar com que vaidades, humilhações, ódios e soberbas fossem acentuados, agravando mais os conflitos sociais do que se pode supor.

Por outro lado, a própria ignorância dos "espíritas" quanto à comunicação com o mundo espiritual, feita de maneira especulativa - como as "colônias espirituais" que não passam de devaneios de um "mundo idealizado" que se contrapõe ao caos terrestre - e pelo faz-de-conta mediúnico (falsas mediunidades - "mentiunidades" - que os médiuns fazem para esconder que não têm concentração suficiente para "falar" com os mortos), piora ainda mais a avaliação moralista.

Daí que elas não podem supor que encarnação havia sido alguém numa vida anterior. Os supostos tratamentos de "vidas passadas" mais parecem um jogo de combinações biográficas, que podem causar impressões drásticas e perigosas, com suposições de vidas anteriores feitas sem um estudo sério e consistente, mas impulsionado pelo "achômetro" que é o motor das atividades "espíritas" feitas no Brasil.

A tese de "resgates coletivos" é improcedente, porque os "espíritas" juntam um "gado expiatório" a que se atribui um "destino comum", mesmo quando algo trágico ocorra numa fila de açougue, em que as pessoas apenas estão "unidas" para aquisição de um produto, mas são totalmente estranhas entre si e nem sequer se cumprimentam. Mas, se ocorre um atentado e todos morrem, os "espíritas" atribuem, de maneira leviana, um "único destino" como se todos os estranhos fossem íntimos entre si.

O "espiritismo", contraditoriamente, age como os imperadores romanos que recolhiam pessoas de casa em casa para um espetáculo de flagelos, torturas ou assassinatos nos estádios esportivos de seu tempo. Tenta "unir" pessoas de procedências diferentes, que nunca se conhecem, que estavam juntas numa circunstância em que uma tragédia aconteça. Só por morrerem juntas, isso não significa que elas estavam juntas em outra vida ou vivem um mesmo destino de reparação moral.

Além do mais, o que Chico Xavier fez é de uma suposição perversa. Logicamente, não há como atribuir a todas as vítimas do incêndio uma encarnação, por sinal distante, na Gália do Século II. Além disso, a diversidade das pessoas supõe uma diversidade de encarnações e de diversos níveis morais. Sem um estudo sério, o que seria trabalhoso, invalida-se o juízo de valor que Chico Xavier fez e que, de forma irresponsável e hipócrita, atribuiu ao coitado do Humberto de Campos.

Chico Xavier criou uma escola irresponsável de "espiritismo", sob todos os aspectos. Atenuar isso à suposta missão de bondade não resolve, porque essa "bondade" nunca teve efeitos expressivos - se tivesse, o Brasil não viveria o caos das últimas décadas - e, em certos casos, foi também maléfica, como na ostentação das tragédias familiares ao sabor do sensacionalismo midiático, não bastasse a fraude das supostas mensagens dos entes queridos mortos, que eram puro mershandising religioso.

A partir disso, cria-se uma "moral espírita" perigosa, que mais permite a manutenção de injustiças e sofrimentos ou o desdém à tragédia alheia. Isso cria um sentimento perigoso de ódio e desdém, que permite a pediatra de Mato Grosso fazer o que fez. Isso vem do conjunto da obra, não é um caso isolado, embora a pediatra deva, sim, responder pessoalmente por seus atos.

Mas o moralismo "espírita" é co-responsável, por ter ensinado essas tristes lições do juízo de valor severo. Aí não dá para escapar, com os "espíritas" se escondendo na capa confortável do bom-mocismo e do simulacro de ações filantrópicas feitas mais para arrancar lágrimas do público do que para ajudar realmente o próximo. O moralismo já foi crueldade demais para ser acobertado pelo verniz da "bondade".

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