quarta-feira, 23 de novembro de 2016

A moral seletiva no Brasil


Um homem de notável status social, de 44 anos e que havia assassinado sua mulher no final dos anos 90, crime que chocou o país mas terminou em impunidade, faleceu de infarto fulminante em seu apartamento há alguns dias.

Ele estava sentado em na poltrona, em sua sala, vendo televisão às 20 horas, e um seriado que mostra uma experiência de vida que lembrou a falecida esposa lhe causa um extremo mal estar, que lhe atinge o coração de maneira violenta. Tenta em vão mudar o controle remoto, mas o infarto é forte demais e, quando ele levanta para pegar algum remédio ou calmante, desmaia e cai.

Na manhã seguinte, o porteiro do prédio estranha que o homem não tenha descido para comprar pão e fazer a conversa matinal de sempre. A faxineira que costuma fazer limpeza nos andares do prédio notou um cheiro desagradável no apartamento do falecido feminicida, que lembra o de um cachorro morto apodrecendo na rua, e corre para avisar o porteiro. Tentam meios de abrir a porta da casa e encontram o corpo do homem, já morto e em começo de decomposição.

Suponhamos que este óbito seja fartamente noticiado nos jornais, sendo os telejornais mostrando imagens de arquivo do último julgamento que garantiu a liberdade condicional do finado e fotos da mulher que ele matou, uma só dela, em 3X4 e outra ao lado do marido-assassino.

Tudo seria natural não fosse a reação, em níveis kafkianos, da sociedade conservadora. Internautas não acreditando no óbito, achando que é mentira pois o rapaz era novo e parecia saudável. Machistas homens e mulheres se revoltando com a tragédia. Gente dizendo que o rapaz "estava reconstruindo sua vida" e lamentando. Algum atrevido perguntando se o rapaz foi envenenado ou se suicidou, embora os laudos médicos indiquem que foi, sim, um infarto.

Isso é chocante mas condiz ao contexto de moral seletiva do Brasil em que vivemos. A sociedade crer que, de dois cidadãos que maltratam sua saúde, o que matou a própria companheira é o menos vulnerável ao infarto (quando, por razões óbvias, é o contrário) em relação a outro indefeso, ou que noticiar o falecimento de um feminicida conjugal iria provocar a falência de um fabricante de armas, é algo absurdo, mas constante em nosso país.

E isso é apenas um caso extremo. Há também o de tecnocratas endeusados por impor medidas antipopulares para a população, ou corruptos dos mais traiçoeiros sendo vistos como "políticos honestos" só porque eles não são vinculados a um partido de esquerda ou a um movimento camponês ou proletário.

A sociedade brasileira passou a viver um surto de uma parcela de brasileiros que expõem preconceitos morais e sociais aqui e ali. A retomada reacionária abriu uma caixa de Pandora da sordidez humana, que, vale lembrar, não é de todos os brasileiros e nem da maioria deles, mas é de uma parcela que, embora minoritária, é influente e dominante na opinião pública.

É um contexto em que pessoas pedem a morte de petistas, mas se arrepiam só de perceber que assassinos, sobretudo os conjugais, também morrem um dia (e, se morrem, a imprensa também se arrepia em dar alguma notícia). Ou de pessoas que preferem a redução de salários e o fim de direitos trabalhistas para combater a recessão econômica. Ou de pessoas que preferem corruptos tecnocratas do que esquerdistas de elevada competência técnica e consciência social profunda.

E tudo isso sem falar de que essa parcela da sociedade defende uma reforma educacional que prefira difundir fantasias religiosas do que debater os problemas da realidade, vistos como "doutrinação ideológica" por um projeto intitulado Escola Sem Partido que não define como doutrinação o proselitismo religioso. Ou o desejo de parte da sociedade em ver a privatização e desnacionalização das empresas públicas brasileiras e a entrega de nossas riquezas ao estrangeiro também é notório.

Temos uma moral seletiva na sociedade ultraconservadora que retomou o poder. Sem verificar a realidade, as pessoas fazem julgamentos de valor nos quais os beneficiados são sempre alguém que detém alguma vantagem social, do poder político ao prestígio religioso. Se pessoas chegam ao ponto de se sentirem ofendidas ao serem informadas que assassinos impunes podem morrer por descuidos de saúde ou pelas pressões emocionais motivadas por seus crimes, então alguma coisa está errada.

Isso para não dizer o recreio vazio do WhatsApp e da banalização dos youtubers para gerações imbecis que promovem até competição de asfixia e mutilação entre os jovens. E um mercado literário que foge do Conhecimento e prefere apostar em livros de autoajuda, de besteirol, de religião, de livros para colorir e tudo que fuja de qualquer compromisso do saber e das informações que escapam do controle do mercado e da mídia.

Recentemente, um dos ministros do governo Michel Temer, Geddel Vieira Lima, foi denunciado por pressionar o ex-ministro da Cultura, Marcelo Calero, a autorizar a construção ilegal (ainda não realizada), embora autorizada pelo IPHAN baiano (num deslize em relação às obrigações técnicas do órgão) de um edifício de 30 andares.

A denúncia daria origem a um escândalo de corrupção, mas como Geddel não é ligado ao PT, foi mantido no governo e tudo ficou na mesma, porque o político baiano é "necessário" para a estabilidade política e a governabilidade. As mesmas desculpas já haviam sido dadas sobre Romero Jucá, promovido a líder do governo Temer no Senado, meses depois dele revelar um plano para obstruir as investigações da Lava Jato contra o referido senador.

Há uma combinação de nostalgias diversas - sobretudo em relação aos anos "moderados" da ditadura militar, durante o governo do general Ernesto Geisel - e uma raiva diante das transformações profundas vividas no país, onde novos agentes sociais começaram a alcançar conquistas sociais e terem voz e capacidade de decisão no cotidiano brasileiro.

Se aproveitando de uma crise econômica motivada pelo capitalismo estrangeiro, inventaram que o PT criou a corrupção no país - por mais que se descubra que a "gritante corrupção" foi, na verdade, obra do PSDB - e criou-se um sentimento catártico que abriu caminho para forças retrógradas retomarem o poder, não apenas através do governo Temer, mas também diante de episódios como o "congresso" do Movimento Brasil Livre e a invasão de grupos fascistas no Congresso Nacional.

O grupo neofascista, que pedia a volta da ditadura militar, se autoproclamava "inteligente" e "consciente das coisas", que uma manifestante do grupo invasor declarou que o Japão é um "país comunista" só por causa do vermelho do círculo que simbolizou o sol nascente. Ignora ela que o Japão é um país capitalista dos mais radicais, diga-se de passagem.

Temos esse momento surreal, em que pessoas tomam surtos de completa ignorância moral, alternando sentimentos de sadismo e masoquismo em defesa de um cenário sócio-político e econômico bastante conservadores, que beneficiem não necessariamente a sociedade retrógrada que respalda a plutocracia, mas um modelo de valores e procedimentos considerados "tradicionais" por aqueles que detém privilégios antigos que os conservadores querem que se preservem e respeitem, sem respeitar, no entanto, as novas demandas sociais dos últimos anos.

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