terça-feira, 9 de agosto de 2016

O esgotamento das estruturas sociais arcaicas


Com muita coerência, o professor Leonardo Boff disse: "Algo parece ficar claro que o design social, montado a partir do colonialismo e do escravagismo com as castas de endinheirados que se firmaram no poder seja na sociedade seja nos aparatos do Estado está chegando ao seu fim".

Vemos o desgaste de um sistema de valores em que posições meramente materiais voltadas à idade, ao dinheiro, ao diploma, à fama, ao poder e outras atribuições similares sofrem um processo avançado de esgotamento. Novos agentes sociais, discriminados pela plutocracia (o "governo dos privilegiados"), estão sofrendo o desgaste e a perda do poder que tinham.

Mesmo nas famílias comuns, pais que só esperavam que os filhos fossem obedientes, mesmo que seja de maneira "espontânea", estão se desiludindo e é verdade que isso é muito doloroso, sobretudo para quem já é idoso e está sofrendo suas últimas doenças. Mas mesmo nelas o contexto social se transforma e a velha supremacia patriarcal-matriarcal dos anos 1940 está sendo posta em xeque.

É evidente, no entanto, que as forças ultraconservadoras, na teimosia de não abrir mão de seus privilégios e de suas convicções, reage tentando forçar um retrocesso histórico descomunal, em doses surreais. O governo Michel Temer se apoia em antigos paradigmas técnicos, administrativos e sócio-econômicos que poderiam garantir confiabilidade, austeridade, competência e transparência.

Mas isso é uma ilusão. Mesmo apoiado nesses mitos, o governo interino é um dos piores da história de nossa República, representando o oposto que qualidades virtuais parecem sugerir. É marcado pela incompetência, pela corrupção, pela hesitação, pela falta de transparência e pela desonestidade manifesta sobretudo quando se diz uma coisa e faz outra.

As estruturas sociais arcaicas sobrevivem porque, em favor delas, há três recursos: econômico, institucional e midiático. Econômico, pela capacidade de fazer grandes investimentos para defender seus interesses. Institucional, usando as leis a seu favor. Midiático, pela influência dos meios de comunicação para fabricar consenso influenciando a opinião pública a apoiar os plutocratas.

Junte-se a isso valores hierárquicos, religiosos e sócio-culturais que outrora eram estáveis e sagrados, e hoje precisam de um forte apelo midiático para se manterem, mesmo sob uma roupagem falsamente moderna. É ilustrativo que, nos últimos anos, as religiões sempre apelem para atrair adeptos juvenis, mesmo as mais retrógradas seitas evangélicas promovem até mesmo concertos de rock!

O "espiritismo" é um exemplo de como esse ultraconservadorismo tenta sobreviver. Um caipira interiorano, consagrado depois na figura do velhinho frágil de olhar choroso, chamado Francisco Cândido Xavier, personifica justamente o que esse ultraconservadorismo faz para tentar resistir à pressão dos tempos.

Mesmo quando surgem correntes que se desentendem entre si, como no caso da tese da "data-limite" que nem de longe é unânime, Chico Xavier tenta ser moldado como se ele tivesse alguma relação com o "futurismo", ele que nunca passou de um caipira típico da República Velha, um católico ortodoxo em crenças, um beato igrejista tendenciosamente convertido num falso filósofo, num pretenso ativista e num suposto cientista.

Protegido por uma reputação religiosa que transforma a ideia de bondade não como uma qualidade social espontânea, mas como uma virtude subordinada ao selo de alguma religião, Chico Xavier, mesmo postumamente, é manipulado para tentar atrair uma legião de adeptos, recebendo uma roupagem "moderna" na qual os "espíritas" não medem escrúpulos em veicular grotescas mentiras.

Mas também o próprio Chico Xavier, usurpador de escritores mortos e explorador de tragédias familiares, era dado a certas mentiras. O que ele fez com Humberto de Campos é de um descaramento sem tamanho. E, o que é pior, tentando enganar a mãe, Ana de Campos, e o filho do escritor, Humberto de Campos Filho, com o bom-mocismo do "médium".

Se Chico Xavier é considerado "o maior símbolo de caridade e bondade" existente no Brasil, é porque as forças ultraconservadoras que se cercaram em torno dele - não eram todos os ultraconservadores que o apoiavam, e houve até um eventual conflito entre conservadores em geral e aqueles que apreciavam o "espiritismo", estes tidos erroneamente como "progressistas" - criaram condições para fabricar consenso em volta do anti-médium mineiro.

A fábrica de consenso começou de forma confusa através dos esforços da própria Federação "Espírita" Brasileira, na pessoa de Antônio Wantuil de Freitas, que atuou como se fosse o "empresário" do "popstar" de Pedro Leopoldo e Uberaba. Sim, porque Chico Xavier foi trabalhado para ser um astro pop, a exemplo de um Michael Jackson, só que voltado ao âmbito religioso.

Mas a FEB não tinha a habilidade de contornar escândalos como a repercussão negativa dos pastiches e plágios literários cometidos pelo "bom médium". Foi preciso esperar mais de quatro décadas para que se trabalhasse o mito de Chico Xavier de maneira "limpa", através de uma experiência trazida por um documentário inglês.

Se você acha que Chico Xavier é "o amor personificado" ou "a bondade encarnada", agradeça ao jornalista católico inglês Malcolm Muggeridge. Foi ele que, através do documentário Algo Bonito para Deus (Something Beautiful for God), de 1969, trabalhou o mito de Madre Teresa de Calcutá como "santidade viva" na época e como "símbolo máximo de caridade da história do planeta".

Até se revelar, depois, que as casas de caridade de Madre Teresa não passavam de "depósito de gente" e que ela viajava com magnatas corruptos e tiranos que "lavavam dinheiro" com verbas que não iam para os assistidos, mas para os cofres do Vaticano, ela era tida como "santa" e considerada "espírito de máxima evolução", apesar do jeito brutal e carrancudo da freira albanesa que atuou em Calcutá, Índia.

Mas o mito deu certo e sobreviveu durante quase três décadas. Apesar de ateu, o jornalista inglês Christopher Hitchens fez um consistente trabalho de pesquisa para chegar a amargas conclusões. E não é fácil enfrentar totens religiosos, marcados por uma blindagem na qual a "bondade" é apenas um aparato para intimidar opositores.

Diante de um Brasil fraco em enfrentar totens e dogmas consagrados pela plutocracia - não devemos esquecer que o "espiritismo" é uma religião de bases plutocráticas - , o mito de Chico Xavier, que não conseguiu ser derrubado porque seus contestadores se fraquejaram seduzidos pela imagem frágil do hipnótico "médium" (no fundo, Chico sempre foi um artífice da hipnose e da manipulação do inconsciente coletivo), ainda foi relançado num outro contexto através da Rede Globo.

Chico Xavier era um católico sem batina, ótimo para a máquina manipuladora da Globo trabalhar, concorrendo com os pastores eletrônicos em ascensão no final da década de 1970, R. R. Soares e Edir Macedo (este, mais tarde, adquirindo uma antiga emissora de TV de São Paulo, cabeça de rede de emissoras por todo o pais).

Além disso, com o Brasil em crise naqueles tempos turbulentos entre o fim da Era Geisel - que já surgiu nos escombros do fracassado "milagre brasileiro" e que tentou "desenhar" um tipo de país e de sociedade que a plutocracia tenta recuperar nos últimos anos - e o começo do governo de João Figueiredo, relançar o mito do "bom médium" é, para a plutocracia, uma boa anestesia para as tensões humanas.

Poucos imaginam que Chico Xavier é um bom instrumento para as elites ultraconservadoras dominarem o inconsciente coletivo. Sobretudo quando a Rede Globo é capaz de inserir valores ideológicos até em uma parcela de detratores da rede televisiva, empurrar o "médium" para ser adorado por ateus e esquerdistas (que nunca poderiam, pelos seus contextos, admirar uma figura dessas) para forçar assim uma pretensa unanimidade.

O passado sombrio de Chico Xavier plagiando e pastichando livros, e fazendo a má escola a partir de seu discípulo Divaldo Franco, ele mesmo caraterizado como um professor dos anos 1930-1940 para o qual se atribuem falsas qualidades ativistas e intelectuais, simplesmente foi posto debaixo do tapete. Existe até mesmo a carteirada religiosa, que prega que "os caras até erraram, e muito, mas pelo menos sempre foram bondosos".

Pelo seu jeito conservador, Chico Xavier só trazia energias boas para quem é retrógrado. Foi Juscelino Kubitschek, por exemplo, apoiar o "médium" e premiar a FEB com o título de "instituição de utilidade pública" para o azar bater à porta não só dele, mas de seus associados diretos e indiretos.

Sobrou até para o marechal Henrique Lott (que garantiu a posse de JK depois de frustrar uma tentativa de golpe em 1955), que teve uma filha assassinada numa discussão fútil. Sobrou para a filha biológica Márcia Kubitschek, morta prematuramente pelo câncer.

E nem o ator José Wilker, que viveu Juscelino na TV, foi poupado, pois, ateu, foi só entrar num "centro espírita" para marcar cirurgia espiritual, de repente faleceu de infarto, aparentemente por conta de tabagismo, aos 69 anos. Com um histórico de tabagismo muito pior, mais um passado de cocaína e álcool, o empresário Doca Street, que matou a socialite Ângela Diniz, atingiu a marca dos 80 anos de idade.

Enquanto isso, foi Fernando Collor apoiar Chico Xavier e ocorreu o contrário. Mesmo quando foi alvo de impeachment, Collor conseguiu retomar a vida política e seu breve governo parecia ter as "boas energias" compartilhadas pelo "espírito do tempo", beneficiando personalidades que se ascenderam no biênio 1990-1992.

Várias personalidades ligadas a degradação sócio-cultural foram beneficiadas, de "pagodeiros" e "sertanejos" que conseguiram até usurpar a MPB em causa própria, passando por figuras midiáticas como Gugu Liberato, Ratinho e Solange Gomes e até um criminoso como Guilherme de Pádua, além de pretensos ativistas como Netinho de Paula e o funqueiro MC Leonardo.

Todos chegaram a 2015 vendendo uma falsa imagem de "heróis dos anos 90", cada um querendo estar em alta, mantendo-se em cartaz na mídia a qualquer preço, em muitos casos exigindo de forma agressiva uma respeitabilidade que nem de longe contribuíram para ter. Mesmo o próprio Collor tentava vender a imagem de um "grande estadista" supostamente perseguido pela grande mídia.

Isso mostra o quanto o Brasil insiste em ser conservador. Mas esse universo ideológico está se esgotando, até mesmo de forma dramática, e as pessoas "de cima" é que estão aflitas, deprimidas e raivosas com quem não está no topo da pirâmide social mas que apela para ter algum lugar ao Sol neste país.

Um país "velho" que não quer sair de cena, mas antes quer retroceder sua marcha como um brutamontes que acha que conseguirá impedir a marcha de um trem ou usar um tacape para desviar do caminho a lava vulcânica que chega em sua direção.

É certo que, em primeiro momento, quem está "embaixo" sofre o preço da ameaça desses retrocessos. Mas é quem está "em cima" que precisa se reeducar, porque as pressões do tempo também não serão generosas com eles. Mais do que os desafortunados, são as pessoas com maior status quo que estão com medo dos novos tempos. Até o presidente Temer.

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