domingo, 11 de dezembro de 2016

Dia de desgraça, véspera de bênçãos?


Já escrevemos várias vezes que o "espiritismo", ao fazer apologia ao sofrimento humano como suposto meio de purificação da alma, está fazendo jus à Teologia do Sofrimento, que a seita igrejista, que evoca Allan Kardec apenas na aparência, herdou do Catolicismo medieval português, vigente no Brasil colonial.

Tantas palestras e textos apelando para as pessoas aceitarem as desgraças, mudarem seus desejos e necessidades, nem que reste apenas o direito de respirar - o que, no Rio de Janeiro, é impossível, tal sua grande poluição e a multidão de fumantes inveterados e arrogantes - revelam o quanto os "espíritas" adotam posturas conservadoras, contrariando severamente os postulados originais de Allan Kardec, um pedagogo influenciado pelos ideais iluministas franceses.

Para piorar, os "espíritas", tão preocupados em ficar com a palavra final para tudo, estão sempre rebatendo críticas com respostas "dóceis", acabam moldando e remodelando os discursos antes cruamente difundidos, mostrando o quanto a "última palavra" não se encerra como argumento, tentando se adaptar às réplicas para produzir sentido, deixando de ser a tão sonhada "palavra final" sempre a se alterar conforme argumentos contrários.

Um exemplo disso é quando um "espírita" diz, cruamente: "Aguente as desgraças com silêncio e resignação", usando como desculpa uma falácia normalmente encarada por seus adeptos como "lição de otimismo e esperança": "O que são décadas de desgraças e muito azar diante da eternidade da vida e da certeza da vida futura?".

É aquela desculpa: "Dia de desgraça, véspera de bênçãos". E como isso revela uma visão sádica, disfarçada em palavras aparentemente bondosas, mesmo severas. Sobretudo diante de um moralista severo como Francisco Cândido Xavier. Ah, quantas pessoas são enganadas e aliciadas pela aparência humilde de Chico Xavier, sem saber o quanto ele feriu almas por causa de pregações moralistas tão cruéis, calcadas na Teologia do Sofrimento católica!

Afinal, uma encarnação tem um prazo curto, limitado, para a pessoa mostrar seus talentos, suas habilidades e suas necessidades. Se sobre ela aparecem obstáculos intransponíveis, barreiras insuperáveis, das quais apenas sacrifícios acima dos níveis normais podem superá-las, para não dizer o atalho do arrivismo que põe em risco princípios éticos do sofredor, então a vida se desperdiça, como se qualquer desgraça fosse brincadeira.

E aí o "espírita", ao perceber essa informação, molda o seu discurso. "Calma, existem soluções para tudo. Ninguém veio aqui para sofrer", tenta argumentar. Quanto a argumentos como "abra mão dos seus desejos", o palestrante "espírita" molda um jeito paternal, dizendo "você pode ter novas habilidades, se reinvente e valorize a vida!", com uma certa hipocrisia temperada com uma retórica pretensamente otimista.

É claro que, dentro da dose certa, o sofrimento reeduca as pessoas. as faz rever seus valores, desejos e necessidades etc. Mas é como num remédio que, tomado na dosagem adequada, traz a tão esperada cura para uma doença. Quando este remédio supera a dose correta, cria efeitos colaterais, mesmo quando traz uma cura. Esses efeitos podem trazer males ainda piores, até mesmo devastadores.

O sofrimento sem limites transforma as pessoas em tiranos, corruptos, ladrões, a etiqueta religiosa do perdão não impede de gerar pessoas cínicas, traiçoeiras, enganadoras, sempre aparentadas da melhor das maneiras, adotando sempre uma fala macia e dócil, mostrando sentimentos aparentemente benevolentes, gestos aparentemente generosos, e uma dedicação fraternal aparentemente digna de notas altas.

Que veneno não pode haver diante disso... Diante de vidas machucadas sem necessidade, que no mundo animal são capazes de transformar bichinhos domésticos em perigosas feras selvagens, os humanos dificilmente escapam dos efeitos danosos que as barreiras além da conta e os infortúnios sem controle, quando a aparente resignação tem como preço caro a brutalização da alma.

Não há como menosprezar isso. Nem sempre a culpa é da vítima, ou melhor, quase nunca é. Circunstâncias alheias à vontade de alguém, quando se acumulam em sucessivos incidentes, ao mesmo tempo pesados e sem controle, é que contribuem para as pessoas se amargurarem, perderem o ânimo, ou então, forjar um aparente entusiasmo buscando alguma revanche íntima contra alguém ou contra alguma situação.

É muito fácil o "espírita", que goza do status religioso que garante os aplausos terrenos de autoridades e aristocratas, dizer para o sofredor "sorrir para a vida", quando ele vive uma avalanche de desgraças em sua vida. Muito fácil aconselhar a aceitação dessa situação com palavras dóceis, mas é esse mel das palavras bonitas que acaba produzindo, no sofredor, o veneno emocional que produzirá pessoas dotadas de algum tipo de desvio moral. Sofrimento demais faz mal.

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