segunda-feira, 5 de junho de 2017

Por que o "espiritismo" pouco liga para o remorso humano


No "espiritismo", parece haver a crença do princípio do "fiado espírita". Consiste na pessoa dotada de um atraso moral ter uma encarnação inteira para fazer suas maldades, só pagando na próxima encarnação.

Mesmo quando o facínora da hora enfrenta profundas derrotas, encrencas e até perdas trágicas - no meio do caminho ele pode perder um sobrinho, um tio ou um amigo de infância - , seus privilégios permanecem intatos, mesmo quando, na velhice, o velhaco que se entretinha em abusos se torne um idoso angustiado e cabisbaixo, querendo um ostracismo com "maior sossego possível".

A questão é complicada, porque na encarnação posterior a pessoa paga em doses maiores aquilo que sonegou. Quando cometia maldades e necessitava do infortúnio para barrar os caprichos de sua ambição desmedida, nada lhe ameaçava de forma real, e mesmo as encrencas no caminho eram contornadas como a habilidade de um craque do futebol que dribla os adversários.

Já quando a pessoa se arrepende, os infortúnios se tornam mais pesados. A pessoa não consegue ter controle do seu destino e todos os sacrifícios que ela faz são em vão. E o mais irônico disso é que, em várias situações, para ela vencer na vida, precisa compactuar com um arrivista ou algoz de ocasião, praticamente entregando o ouro a bandido em troca de umas migalhas.

O "espiritismo", que se mostra inclinado à Teologia do Sofrimento de forma que esta ideologia medieval católica prevaleça até mesmo sobre a própria deturpação dos ensinamentos de Kardec, ignora que o remorso humano poderia ser um atestado para o alívio das desgraças.

O verdadeiro remorso não vem do algoz que abusa demais de seus atos desumanos e que, na menor encrenca, faz pose de tristonho, criando drama sobretudo no banco dos réus. Ele vem do sofredor extremo, que vê as barreiras se aumentarem à sua frente, sem que qualquer esforço feito pudesse derrubá-las, e com isso se arrepende dos erros e pede clemência ao Destino.

O sistema de valores retrógrados prevalecentes no Brasil, em que coexistem princípios de moralismo rigoroso com outros de desonestidade arrivista, permite o quadro injusto que se mostra. E a crise política do governo Michel Temer é apenas a demonstração dos prejuízos que a complacência aos algozes e o pouco caso com os infortunados fazem em nome de um moralismo que protege quem está no alto da pirâmide social.

Evidentemente que temos o topo da pirâmide em chamas, mas até agora os moralistas não querem largar o osso. Conflitos dos mais sérios envolvem as pessoas que antes se protegiam pelo status da idade, do dinheiro, da fama, do clã familiar, do porte de armas, do diploma, da visibilidade, do prestígio tecnocrático, do prestígio religioso, de vários tipos de privilegiados que se achavam portadores da Razão a ponto de poderem até errar, sob a desculpa de que "todo mundo erra".

Mas os impasses ainda não sensibilizam as pessoas e o "espiritismo", que enfrenta crises sérias de fazer as de certos movimentos neopentecostais parecerem aviões voando em céus de brigadeiro, se mantém num padrão moral bastante austero, que influi na inutilidade e até no prejuízo que tratamentos espirituais exercem nas pessoas sem privilégios.

O "espiritismo" se perde em velhos padrões moralistas, numa "caridade" bastante frouxa, num misticismo extremo e num igrejismo obsessivo, além de apostar numa crença de que o algoz pode ter a vida toda para cometer seus abusos, mas em outra encarnação terá que pagar caro demais pelo que fez. Estimula-se o calote moral num momento, promove-se o estelionato moral em outro.

A situação torna-se tão desumana que os sofredores extremos, não bastassem serem "aconselhados" a aguentar suas desgraças, precisam fingir felicidade até para si mesmos. É como se, quando um prego atinge as palmas de nossas mãos, em vez de gemermos de dor extrema, diante do sangue disparando pelo furo do prego, termos que sorrir de felicidade e agradecermos a Deus pela desgraça obtida.

Temos sofredores demais, pessoas não podendo resolver seus problemas senão pela alegria fingida e pela compactuação com algozes e arrivistas, enquanto o topo da pirâmide social precisa ser reparado e recuperado, apesar do seu estado avançado de decomposição. Algo precisa ser mudado e os ocupantes do topo tenham que descer alguns degraus para não serem queimados pelo incêndio que atinge o velho cume.

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