sexta-feira, 1 de dezembro de 2017

Devemos tomar cuidado com discurso de "intolerância religiosa"


Denúncias sobre intolerância religiosa se multiplicam e, de maneira bastante oportuna e necessária, criam-se delegacias especializadas nesse crime, no esforço de impedir que ações que já ocorrem no Primeiro Mundo, como os atentados que dizimam multidões, aconteçam no Brasil, assim como atos isolados que tantos danos, materiais e humanos, causam de forma lamentável.

O problema, no entanto, é como se observa no caso do bullying. Muitos valentões que na infância ou na adolescência agrediam colegas menos privilegiados nas escolas, se passam agora por agredidos. Há muita religião privilegiada que, diante da menor denúncia de irregularidade, reage com vitimismo e se passa por vítima de "intolerância religiosa".

O recente ataque de vandalismo, no Rio de Janeiro, a uma estátua do poeta Carlos Drummond de Andrade, ajuda a entender por que o ataque similar feito ao mausoléu, em Uberaba, do "médium" Francisco Cândido Xavier, não foi um ato de intolerância religiosa, mas um ataque a todo tipo de famoso, independente da atividade e do perfil que fosse.

Esses ataques se dirigem a qualquer tipo de famoso, geralmente uma pessoa que é considerada símbolo de uma cidade. Na verdade, o vandalismo é cometido quase sempre por pessoas movidas por um ódio generalizado à cidade onde vivem, é um ódio à cidade como instituição, e qualquer monumento de uma figura destacada em cada cidade pode ser atingido. Pode ser Chico Xavier, Dom Pedro I, Hebe Camargo, Leonel Brizola, Emílio Médici ou o palhaço Carequinha.

A intolerância religiosa acontece, mesmo, em religiões relacionadas a camadas sociais diferentes do padrão aceito pelas elites dominantes. Entre elas, estão as religiões afro-brasileiras, judaicas e muçulmanas, associadas a povos negros, árabes e mestiços, que estabelecem hábitos e crenças que não são compartilhados pela sociedade mais elitista.

O "espiritismo" não está entre as vítimas de intolerância religiosa. Tanto porque é uma religião de elite, que em muitos casos compartilha interesses com os neopentecostais (evangélicos derivados de movimentos como Assembleia de Deus e Igreja Nova Vida), como a criminalização do aborto.

O "espiritismo" é aceito pela alta sociedade e recebe uma blindagem surreal na qual a doutrina brasileira é tolerada até demais. Nem para dar explicações Divaldo Franco quis dar a respeito da "farinata" e por que decidiu homenagear uma estrela cadente da política nacional, o prefeito de São Paulo, João Dória Jr..

E A INTOLERÂNCIA DOS "ESPÍRITAS"?

O próprio Divaldo deu sua manifestação de intolerância depois de ser entrevistado por um veículo de imprensa após um congresso "espírita" na Espanha. Com o agravante de falar com um tom de mansuetude, Divaldo fez um julgamento de valor de extrema perversidade: acusou os refugiados do Oriente Médio de terem sido "antigos colonizadores sanguinários" que estariam voltando para a Europa para "recuperar seus tesouros".

Isso não foi uma declaração de intolerância? O prestígio de Divaldo não é razão para ele falar e fazer o que quer, e criticar suas posturas não é intolerância religiosa? E quem imagina se Divaldo não teria cometido intolerância religiosa no seu terrível juízo de valor, pois boa parte dos refugiados era de judeus e muçulmanos, pessoas que só queriam ter uma vida tranquila, ainda que modesta, sem se preocuparem com antigos tesouros ou coisa parecida, mas com um mínimo de qualidade de vida.

Os "espíritas" é que fazem juízo de valor o tempo inteiro. Se você vai para um "auxílio fraterno" em um "centro espírita" e descreve um problema pessoal, a resposta que quase sempre seus membros dão é para a pessoa aceitar o problema, porque ele lhe traz vantagens e benefícios na vida.

Se, por exemplo, um trabalhador reclama porque as contas acumulam e sobem e o salário desce - sim, estamos vivendo o "ótimo" período da reforma trabalhista que permite até mesmo redução salarial - , o "tarefeiro" da "casa espírita" dirá coisa do tipo: "de repente você está gastando demais em bobagem, corte a cesta básica, corte a salada, fique só com arroz e feijão, esse é um ótimo momento para você entrar em contato com Deus e negociar com seu patrão, que é um irmão seu".

Nem se as oportunidades que a pessoa atrai são azarentas - tipo um rapaz que perde tragicamente a moça por quem se apaixonou e depois atrai uma mulher-fruta que foi casada com um miliciano ciumento e enfurecido com o divórcio - o "tarefeiro espírita" se convence: geralmente ele vem com coisas do tipo "De repente a mulher-fruta precisa do amor de homens como você e não vejo problema em você negociar com o ex-marido dela. Fale com jeitinho e ele compreenderá".

Moleza. Negociar com o cano de um revólver, para um "espírita", tanto faz. Se a pessoa morrer, o "espírita" acha bom: "tadinho, mas ele está nos braços de Deus", dirá. A intolerância que os "espíritas" tem com as necessidades do outro, que combatem com o "exército de palavras" de seu julgamento de valor, é uma marca dessa religião que, apesar de "baseada" em postulados de Allan Kardec, é na verdade inspirada no Catolicismo jesuíta português.

Em 2009, uma entidade "espírita" na Espanha é que foi movida por profunda intolerância social. O evento Vida Depois da Vida, da região de Albacete, foi criticada por um acadêmico, o professor universitário Fernando Cuartero, por usar a estrutura da universidade onde ele lecionava, a Universidad de Castilla-La Mancha, para promover um evento religioso.

O Vida Depois da Vida poderia ter escolhido outro lugar, mas insistiu em usar a universidade e até suas marcas para promover o evento. Por ter chamado de "enganadores vulgares", o professor Cuartero foi processado pelo Vida Depois da Vida, uma entidade que se diz "seguidora da doutrina de Allan Kardec" mas é composta por muitos membros associados à Astrologia e ao esoterismo. A entidade manifestou admiração por Chico Xavier e Divaldo Franco.

Cuartero foi processado em 2010 e condenado a pagar multas e fazer retratação, mas um movimento de solidariedade de ativistas sociais e de entidades ligadas à liberdade de expressão do pensamento crítico apoiaram o professor, que, através de um processo de defesa na Justiça, foi absolvido. O caso revela que a intolerância está, muitas vezes, no lado dos "espíritas".

Religiões privilegiadas como os setores conservadores do Catolicismo, as seitas neopentecostais - como a Igreja Universal do Reino de Deus - e o "espiritismo" brasileiro não sofrem intolerância religiosa. Além disso, neopentecostais e "espíritas" estão associados a atos de intolerância, os primeiros através de pautas sociais retrógradas e atos de repressão a causas modernas, como a LGBT, por exemplo, e os segundos através do juízo de valor.

Uma pediatra de Rondonópolis (MT), com um juízo de valor não muito diferente do que "sabiamente" transmitiram Chico Xavier e Divaldo Franco, foi condenada por ter usado a "liberdade religiosa" para justificar a recusa de atendimento a uma criança cuja mãe informou ter sido vítima de estupro. A médica fez juízo de valor dizendo que a menina "tinha que sofrer aquilo" porque "exibia uma energia sexual que chamou a atenção do estuprador, seu próprio tio".

Nas seitas neopentecostais, há denúncias de enriquecimentos ilícitos de pastores evangélicos. Há também denúncias do uso de alegações "religiosas" para cometer atos de intolerância social e até de racismo, como no caso do combate às religiões afro-brasileiras. Investigar isso é intolerância religiosa?

E no "espiritismo"? Obras supostamente mediúnicas que revelam conteúdo fake - para desespero de muitos, nem Chico Xavier se livrou deste problema - têm que ser toleradas em prol da "liberdade religiosa"? Apontar irregularidades nos livros atribuídos ao espírito de Humberto de Campos, mesmo comprovadamente distantes do estilo original do autor, é ato de "intolerância religiosa"? Evidentemente, não.

A liberdade religiosa não pode servir de desculpa para as pessoas fazerem o que quiserem. É preciso ter muito cuidado e discernimento, porque o discurso de "liberdade religiosa" pode muito bem servir de estímulo ao obscurantismo e aos abusos cometidos sob a marquise da fé religiosa.

Combatemos a intolerância religiosa, mas vejamos o outro lado, quando religiões que abusam de seus procedimentos - como as traições que os "espíritas" fazem ao legado original de Allan Kardec - devem ser questionadas e investigadas. As religiões não estão acima da humanidade, elas precisam ter um limite para não cometer atos abusivos e irresponsáveis.

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