Embora o espiritolicismo credite como "verídica" a autoria de Humberto de Campos (1886-1934) atribuída ao livro
Brasil, Coração do Mundo, Pátria do Evangelho, reforçada pelo aparente fracasso do processo judicial movido pelos herdeiros do escritor contra o médium Chico Xavier, há fortes indícios de que o notável escritor não teria, como espírito, feito a referida obra.
Acredita-se que a família de Humberto de Campos, em especial a viúva do escritor, teria tido pouca cautela na escolha de um advogado habilidoso para enfrentar o "popstar da FEB", que a essas alturas se ascendia na mídia através do tendencioso livro.
Para quem não sabe, Humberto de Campos, nos seus breves 48 anos de vida, foi um intelectual importante na primeira metade do século XX no Brasil. Era maranhense de Muritiba - cidade depois rebatizada com o nome do escritor - e era um notável jornalista, cronista e poeta.
Seu livro mais famoso é de poesia,
Poeira, lançado em 1910. Chegou a viver no Pará, onde iniciou sua carreira jornalística em periódicos locais. Mudando-se para o Rio de Janeiro, torna-se um importante intelectual, fazendo parte de um movimentado círculo social ao lado de nomes ilustres como Coelho Neto e Olavo Bilac.
Humberto tem suas crônicas publicadas em vários periódicos do Rio de Janeiro (então Distrito Federal), São Paulo e outras capitais brasileiras. Em várias delas, escreveu usando o pseudônimo de Conselheiro XX.
Ele toma posse na Academia Brasileira de Letras em 1919, na cadeira do amigo Emilio de Meneses, falecido um ano antes. Em 1920 ingressa na política, tornando-se deputado federal pelo Maranhão, exercendo mandatos que eram renovados até a Revolução de 1930, quando foi cassado.
No entanto, como Getúlio Vargas e seus pares admiravam o talento de Humberto de Campos, o presidente do então "governo provisório" (o que durou até 1945, incluindo o Estado Novo) tentou consolá-lo oferecendo o cargo de Inspetor de Ensino do Rio de Janeiro e, depois, como diretor da Casa de Rui Barbosa.
Nos útlimos anos, já doente, lançou o livro
Memórias (1886-1900), em 1933. Não pôde completar o segundo volume, pois faleceu em 1934 já com a falência urinária e problemas de visão agravados, sofrendo uma síncope durante uma cirurgia. Com o que já foi escrito, o volume foi lançado postumamente com o título de
Memórias Inacabadas.
Depois de tantas coletâneas póstumas, Humberto de Campos causaria polêmica com a publicação, em 1950, do livro
Diário Secreto, que revela anotações em sua vida particular, devido aos comentários um tanto indelicados em relação a personalidades como Vargas, Bilac, Machado de Assis e outros contemporâneos.
Em todo caso, a situação não é mais ridícula nem preocupante como a do caso do livro
Brasil, Coração do Mundo, Pátria do Evangelho. O processo judicial foi movido pela viúva do escritor, Catharina Vergolino, junto a dois dos três filhos que participaram da ação (Henrique e Humberto Filho; a irmã Maria de Lourdes se absteve da questão)
A ação movida contra o médium reivindicava o pagamento dos direitos autorais a Catharina e os filhos, herdeiros declarados do escritor, mas sofreu derrota - a juíza o julgou improcedente - e tal derrota foi comemorada por muitos por favorecer a ascendente figura de Chico Xavier, mitificada pela sua personalidade aparentemente humilde e simples.
No entanto, deve-se levar em conta que Humberto de Campos já havia feito, no final da vida, duas crônicas a respeito do livro
Parnaso de Além-Túmulo, suposta psicografia de Chico Xavier. Mesmo de forma um tanto educada, Humberto, embora reconheça a semelhança do estilo dos textos mediúnicos com a produção que os poetas a eles atribuídos fizeram em vida, aponta um certo ceticismo.
No texto
Poetas do Outro Mundo, ele chega a ser gentil com o conteúdo do livro:
"Eu faltaria, entretanto, ao dever que me é imposto pela consciência, se não confessasse que, fazendo versos pela pela do Sr. Francisco Xavier, os poetas de que ele é intérprete apresentam as mesmas caraterísticas de inspiração e expressão que os identificavam neste planeta. Os temas abordados são os mesmos que os preocuparam em vida. O gosto é o mesmo e o verbo obedece, ordinariamente, a mesma pauta musical. (...) sente-se ao ler cada um dos autores que veio do outro mundo para cantar neste instante, a inclinação do senhor Francisco Xavier para escrever 'à la manière de...' ou para traduzir o que aqueles altos espíritos soprarem ao seu ouvido".
Mas, demonstrando preocupação com o filão de textos mediúnicos, dos quais ele temia uma concorrência desleal com a obra produzida pelos autores atribuídos quando eram vivos, além da sua dúvida quanto à autoria dos poemas aparentemente psicografados
Escreveu ele, neste sentido:
"Se eles (os mortos) voltam a nos fazer concorrência com seus versos perante o público e, sobretudo, perante os editores, dispensando-lhes o pagamento de direitos autorais, que destino terão os vivos que lutam, hoje, com tantas e tão poderosas dificuldades? Quebre, pois, cada espírito a sua lira na tábua do caixão em que deixou o corpo".
Em seguida, o escritor chegou a lançar um desafio aos supostos espíritos dos "poetas do além-túmulo":
"venham fazer concorrência em cima da terra, com o arroz e o fejião pela hora da vida. Do contrário, não vale".
Já no segundo texto,
Como Cantam os Mortos, publicado no Diário Carioca em 12 de julho de 1932, dois dias após o anterior, também no mesmo jornal, Humberto parece ainda mais cético com o conteúdo do livro e pede para que outros autores averiguem melhor seu conteúdo, para verificar o que tem de sobrenatural ou de mistificação.
No entanto, já em 1935, preparando o "livro" que seria publicado na FEB em 1938, Chico Xavier inclui um texto supostamente atribuído a Humberto, um ano após o falecimento deste, na segunda edição de
Parnaso de Além-Túmulo. Chico havia dito que "sonhou" com Humberto e resolveu ao longo dos anos publicar obras com mensagens atribuídas a seu espírito.
OBRA RISÍVEL
A obsessão por Humberto de Campos por parte de Chico Xavier se consagrou com o livro
Brasil, Coração do Mundo, Pátria do Evangelho, lançado em 1938 e cujo conteúdo não trazia surpresas em relação à compreensão um tanto mitológica e ufanista dos fatos históricos brasileiros, dentro da perspectiva oficialesca dos falsos heróis.
Nota-se que, nessa mesma época, já surgia, na França - a pátria de Allan Kardec - uma nova corrente historiográfica que, aproveitando também conceitos da Antropologia e da Sociologia, substituía a abordagem histórica que apenas glorificava políticos, militares e famosos pela abordagem dos fatos sociais em si, inclusive de personagens anônimos, multidões ou hábitos sócio-culturais, independentes de se focalizar algum personagem.
Essa abordagem é a História das Mentalidades, fundada pelo historiador Marc Bloch - morto por tropas nazistas em 1944 - e que constituiu numa transformadora disciplina que revolucionou o processo de pensar a História no mundo inteiro.
Logo quando se lê o livro
Brasil, Coração do Mundo, Pátria do Evangelho, nota-se que sua narrativa é risível. Parecendo um conto de fadas, o livro mostra um Jesus Cristo infantilizado e meio pateta, que, orientado pelo "anjo" Helil - tido como "superior" a Jesus - a conhecer o Brasil, suposta pátria matriz de uma "nova civilização".
Helil teria sido, segundo o livro atribuído a Humberto de Campos, o Infante D. Henrique de Avis, o Infante de Sagres, militar e navegador português que ajudou nas expedições para o Brasil (oficialmente consideradas "descobertas" pela historiografia oficial). Como em toda mediunidade patrocinada pela FEB (Federação Espírita Brasileira), esta informação também é muito duvidosa.
Como se não bastasse o livro estar muito aquém do estilo literário de Humberto de Campos e que, em que pese o espírito do tempo mostrar o falecido escritor como um intelectual aristocrático, dificilmente ele escreveria um livro desses, sua suposta autoria é simplesmente derrubada com um fato ocorrido nos bastidores do espiritolicismo e ainda pouco conhecido.
O livro
Brasil, Coração do Mundo, Pátria do Evangelho teria sido, na verdade, uma reformulação de um texto originalmente escrito pelo palestrante Leopoldo Machado, intitulado Brasil,
Berço da Humanidade, Pátria dos Evangelhos, para uma conferência da FEB registrada na revista Reformador, periódico oficial da FEB, edições de 03.10.1934, página 519 e 01.11.1934, página 575.
Aparentemente, não consiste num plágio, desses em que um texto que imite outro gere algum problema de ordem jurídico, mas uma alteração da forma de escrita que mantém o sentido da mensagem do texto da palestra e da obra supostamente mediúnica. O
texto do blogue Obras Psicografadas traz mais detalhes sobre o caso.
AUTORIA DUVIDOSA
A viúva e os dois filhos de Humberto de Campos que decidiram processar Chico Xavier e obter, na hipótese de reconhecimento da autoria do espírito do escritor, o pagamento dos direitos autorais, ao verem a causa ser perdida, por declaração de improcedência dada pelo juiz João Frederico Mourão Russell, recorreram de sua decisão.
Baseando-se na tese de que o que vale para os direitos autorais é o que o autor produziu em vida, Mourão Russell julgou o processo inepto, sem deixar claro a questão de autenticidade ou não da autoria atribuída.
No entanto, a família perdeu as ações judiciais, e como protesto chegou a queimar exemplares dos textos psicografados. O advogado da família, no entanto, mostrou argumentos que hoje se mostram convincentes quanto à dúvida sobre a autoria de Humberto de Campos.
Disse o advogado:
"Não só está eivada de imperdoáveis vícios de linguagem e profundo mau gosto literário, como é paupérrima de imaginação e desprovida de qualquer originalidade (...) O que é aproveitável não passa de grosseiro plágio, não só de ideias existentes na obra publicada em vida do escritor, como de trechos inteiros, o que é de fácil verificação".
Mais tarde, diversos críticos literários bastante conceituados fariam críticas severas sobre a qualidade de diversos textos atribuídos a escritores famosos aparentemente psicografados por Xavier. Um deles identificaria até mesmo a falha da métrica poética do "espírito" Olavo Bilac, contradizendo o rigor métrico que o poeta parnasiano fazia em vida.
A conclusão que se tem é que Humberto de Campos não teria escrito mesmo
Brasil, Coração do Mundo, Pátria do Evangelho, uma obra de um ufanismo caricato, tosco e infantilizado, de muitas falhas historiográficas, uma aberração até mesmo para os tempos de intelectualidade aristocrática e predominantemente conservadora como a que foi no tempo do escritor maranhense.