sábado, 5 de dezembro de 2015

A "religião da comida"

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Para começo de conversa, é sempre bom moderar a dieta alimentar. No entanto, a neurose que se tem em relação aos procedimentos alimentares e um rigor exagerado na escolha de alimentos para uma dieta cria um problema que transforma as pessoas em escravas do "ideal da alimentação perfeita".

"Come-se para viver, mas não se vive para comer". O ditado, defendido pelos fanáticos da dieta, no entanto não é por eles defendido na prática. Afinal a "religião da comida" também mostra suas sérias contradições, diante da "profissão de fé" da "dieta perfeita".

Em primeiro momento, essa "religião" tem suas virtudes. Ela mostra que saladas podem ser tão deliciosas quanto frituras, com a vantagem de serem mais sadias. Mostra também que as pessoas precisam buscar uma boa forma física, não engordarem nem criarem barriga para não terem, na meia-idade, doenças graves e fatais.

A coisa, no entanto, vai ao exagero quando a dieta torna-se uma tirania, e aí vem aquele papo de que devemos "comer de três em três horas", que é a ideologia das refeições intermediárias. A vida não requer que tenhamos que deixar de fazer nossas coisas, numa sobrecarga de tarefas e compromissos, só para fazer um lanchinho.

Imagine um jornalista que conseguiu, com muita dificuldade e sob a sutil resistência do entrevistado - que geralmente concede uma entrevista a contragosto - ter que interromper o suado questionário para dizer que vai fazer um lanchinho. O entrevistado se anima e, quando o jornalista se retira para comer seu lanchinho, o outro já foi embora e a entrevista "murchou".

Em nome da "boa saúde", o jornalista cometeu um sério deslize profissional e, evitando o "monstro do ácido" que o moralismo gastronômico inventa para intimidar quem não faz as refeições intermediárias, como alguém que fala no "homem do saco" ou da "bruxa malvada da floresta".

COMER QUANDO NÃO SE TEM FOME

Os lanches intermediários são, na verdade, pontos facultativos da dieta alimentar humana. Eles são vistos como complemento, mas certas correntes da Nutrição apelam para a tese, um tanto discutível, da obrigatoriedade das refeições intermediárias, sob o pretexto de que o organismo formará um ácido entre seis horas de intervalo.

A biologia diz que o organismo humano tem três refeições obrigatórias: desjejum (ou café-da-manhã), almoço e jantar ou, quando muito, o lanche noturno. Mesmo assim, os chamados lanches são apenas refeições complementares e, por isso, são opcionais. Ninguém é obrigado a lanchar ou deixar de lanchar. Quem quiser lanchar, esteja à vontade. Quem não quiser, que não lanche.

Um ponto que os moralistas gastronômicos não consideram é a fome. Eles também não consideram o paladar, o sabor, o moralismo gastronômico se apega cegamente à nutrição orgânica, algo que, na complexidade da vida, é completamente inútil.

Afinal, de que adianta a "alimentação perfeita" para pessoas que vivem deprimidas ou estressadas? Além disso, na sobrecarga do dia a dia, que adianta deixar de fazer um compromisso de máxima urgência só por causa de um lanchinho no meio da manhã ou da tarde? Isso também não é "viver para comer"?

E a fome? Ela, que deveria ser a protagonista no teatro da gastronomia, é rebaixada a um papel terciário, já nem é mais coadjuvante, pois até no elenco recorrente (de menor destaque) sua importância é minimizada. No moralismo gastronômico, a fome praticamente só faz figuração, é quase uma "escada" para as frescuras adotadas pelo seu padrão de dieta.

Nas refeições intermediárias, elas só se tornam necessária quando a pessoa tem fome. Se, no meio da tarde, as pessoas têm fome, elas podem comer o seu lanche. Mas nem todo mundo tem fome nessas situações, e não é justo que se obrigue estas pessoas a também lanchar, para que não venha o "monstro do ácido".

Um caso curioso é que, em muitas famílias, cujas mães ainda se apegam psicologicamente aos filhos, mesmo crescidos, como se o "cordão umbilical" mental não tivesse sido cortado, usam o moralismo gastronômico como desculpa para a "gula simbólica".

Como neste caso as mães ainda se sentem dependentes psicologicamente dos filhos, as refeições intermediárias acabam representando, para as mães, a realização de uma gula que elas não podem seguir. Os filhos acabam, simbolicamente, matando a fome de suas mães, quando fazem as refeições intermediárias.

Parece uma coisa estranha, mas faz sentido. As mães não podem comer mais, e, por isso, se sentem realizadas quando seus filhos fazem refeições intermediárias, já que eles comem o "excedente" que as mães desejariam comer e não podem, para não engordarem.

Isto é uma impressão remanescente para mães que ainda se lembram do momento da gravidez, quando havia um vínculo orgânico entre elas e os bebês, e por isso, a alimentação de cada mãe influía na alimentação do filho. É uma impressão inconsciente, instintiva, e, por mais que uma mãe tente desmentir, é aquilo que ela sente.

Daí a ênfase absurda e desesperada da mãe obrigar o filho a fazer um lanche intermediário. "Mãe, eu não estou com fome", protesta o filho, ocupado em seus afazeres. "Tem que comer, senão vai formar um ácido no estômago", reage a mãe, sem ela mesma saber que, na verdade, ela é que precisa mais do "lanchinho" do que o próprio filho.

Aí entra a questão da fome. Como é que uma dieta alimentar considerada "perfeita" não considera as questões de sentir ou não sentir fome? É completamente estranha uma dieta em que se coma menos quando se tem fome e, por outro lado, tenha que comer alguma coisa no momento em que não se tem fome, pela desculpa de evitar o "monstro do ácido".

Em primeiro lugar, nem sempre esse monstro do ácido se forma. E a pessoa, estando distraída no seu afazer, não vai necessariamente passar mal porque não faz o tal lanchinho. Paciência. Um bombeiro terá que deixar de socorrer alguém porque têm que comer uma frutinha às 15 horas? E um policial, será que é melhor que ele deixe um bandido fugir porque é hora da "merenda"?

No caso da fome, ter que comer, no almoço, a metade que o corpo necessita, porque na "merenda da tarde" tem mais, é algo que angustia o organismo. O organismo é mais abalado com essa manipulação equivocada da fome, desse "abrir e fechar a boca" fora da vontade do indivíduo, e que, ela sim, pode causar danos psicológicos e físicos.

Em muitos casos, a "comida que não engorda" dos lanches intermediários aumenta o peso e a gordura das pessoas, e o moralismo gastronômico muitas vezes não se cuida se a pessoa só comeu um alface com arroz e feijão no almoço e apela para uma "inocente" barrinha de cereais que pode ter menos açúcar, mas nem tão pouca gordura assim.

A fome é o apelo orgânico que cada indivíduo tem para avisar da necessidade de comida. Ter que se opor a esse critério e desejar um almoço em padrões anoréxicos porque terá um "quase banquete" na hora do lanche é um grande equívoco desse "ideal da dieta perfeita", pelo simples fato de ir contra as necessidades pessoais que variam em cada pessoa, desprezando a importância da fome como aviso do organismo da necessidade de comer.

A neurose pela dieta perfeita, na sociedade complexa em que vivemos, revela a grande farsa que é o moralismo gastronômico, a "religião da comida". E seus seguidores se contradizem quando reprovam a ideia de "viver para comer", mas apelam para a obrigatoriedade das pessoas deixarem de fazer o que fazem em suas vidas por causa dos "lanchinhos de três em três horas". Isso também é "viver para comer".

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