quarta-feira, 4 de novembro de 2015

Trolagem revela visão provinciana da sociedade


O Brasil vive uma crise de valores, sobretudo pela sua mania em misturar valores modernos e retrógrados, como se fizesse uma gororoba com eles. Daí que situações diversas revelam o aspecto estranho de pessoas serem ao mesmo tempo retrógradas e lidarem com as tecnologias digitais com desenvoltura.

Um exemplo é quando as musas "populares", pretensa e forçadamente sensuais, se autoproclamam "feministas" só porque estão solteiras e, no entanto, expõem seus corpos como se fossem mercadorias em oferta, não medindo escrúpulos nem contextos para forçar o sensualismo obsessivo e até vincular outras situações para o exibicionismo gratuito de seus corpões siliconados.

O reacionarismo juvenil, espécie de "ensaio" para os Revoltados On Line e para a atuação de vândalos legislativos do porte de Eduardo Cunha e Jair Bolsonaro, embora sabemos que o grupo político de Eduardo Paes e Luiz Fernando Pezão também gostam de rasgar leis, é também ilustrativo para mostrar a embalagem "moderna" que geralmente esconde o conteúdo podre de muitas coisas no Brasil.

Nas mídias sociais, a chamada "trolagem em massa", campanhas coletivas de desmoralização de alguém que pense diferente ao estreito horizonte de crenças políticas, sociais, culturais e morais de uma minoria de internautas, revela o quanto muitos jovens tidos como "ultramodernos" mantém uma visão provinciana, como se fossem jagunços de algum latifúndio.

Eles podem falar palavrão, saberem de jargões futuristas, usarem um visual multiplamente arrojado que tanto pode ser de universitários comuns, caprichando no visual "casual" mais informal, como podem misturar elementos rastafári, hippie, surfistas, skatistas e punks, seja no vestuário, na forma de reagir às coisas e no modo de agir, de andar e "curtir a vida".

A trolagem vem desde a popularização da Internet, quando uma minoria de jovens considerados privilegiados e influentes passou a expressar intolerância contra aqueles que pensavam diferente dos estreitos pontos de vista defendidos pela chamada "galera irada e tudo de bom".

Mas esses atos de vandalismo digital se tornaram mais intensos a partir de 2005, quando o "patrulhamento" passou a ser feito em bloco, com um grupo de internautas que passou a julgar absurdo alguém questionar algum valor dominante na mídia, política, cultura e mercado e passou a "zoar em massa" contra quem manifesta alguma contestação.

Na verdade, esses atos são decididos por um ou dois internautas numa comunidade específica nas mídias sociais. Tipo "Eu Odeio Acordar Cedo", "Adoro Sair à Noite" ou algum fã-clube de algum figurão da moda. Isso quando não são causas abertamente reacionárias.

Cerca de um ou dois internautas rastreiam algum comentário contestatório, contra alguma modismo ou contra alguma decisão de envergadura política, entre outros valores "estabelecidos" e, tomados de poder de influência sobre os colegas das mídias sociais, chamam eles para compartilhar uma trolagem a ser combinada para um determinado dia ou horário.

Esses valores podem ser, por exemplo, uma gíria como "balada", expressão do poderio midiático, já que o jargão foi difundido originalmente pela Rede Globo e Jovem Pan FM, ou medidas como a pintura padronizada nos ônibus do Rio de Janeiro que simbolizam um jogo de interesses político-empresarial em formação, como também podem ser valores machistas, racistas e homofóbicos, que tanto podem defender "mulheres-frutas" como humilhar negros e homossexuais.

Os líderes da trolagem, geralmente de uma a três pessoas, combinam com "amigos" nas mídias sociais e em comunidades específicas, e de repente eles invadem de páginas de recados a fóruns e petições. Em quantidade "industrial", forjam um chat entre si que, em primeiro momento, divulgam comentários irônicos.

Quando o internauta lesado começa a reagir, os comentários se multiplicam e, quando a coisa começa a complicar, os troleiros já começam a fazer ameaças e ofensas gratuitas, alguns chegando ao ponto de fazer ameaças de morte ou de invadir a conta privada da vítima.

Nem todos correspondem necessariamente ao meio social dos troleiros. Os mais agressivos chegam a ser até três ou quatro membros, geralmente os mentores das difamações. Há outros tantos que concordam com eles e compartilham dos pontos de vista, mas há também outros que mais parecem figuras de bem, mas vão na onda porque acham um troleiro "divertido" e "sem maldade".

É como num bullying da escola, em que o valentão humilha a vítima e a turma toda ri, achando que se trata de uma brincadeira divertida. Algumas pessoas de bem, que não sentem qualquer raiva da vítima, aderem porque sentem simpatia pelo valentão, assim como pessoas que não sentem antipatia pelo internauta questionador participam da trolagem por ela parecer "divertida".

GAFES E ENCRENCAS

Só que em muitos casos, a trolagem traz consequências graves. Sobretudo para os cúmplices passivos, que foram na onda não porque odiavam a vítima mas porque achavam a zoeira "divertida", e que passam a ser negativamente marcados pela participação da bagunça.As risadas "inocentes" durante o bullying podem gerar danos sociais severos até para quem aderiu na boa-fé.

É o caso quando preconceitos sociais severos são lançados. Há preconceito contra vários valores sociais considerados "estranhos": homens que ficam solteiros por muito tempo (os chamados "encalhados"), homossexuais, negros e nordestinos.

É bom deixar claro que os troleiros são pessoas reacionárias. Inicialmente sem qualquer tipo de ideologia, são facilmente inclináveis à extrema-direita, por seus preconceitos sociais e pela apegada admiração a líderes políticos, midiáticos, empresariais e acadêmicos, mesmo que seus ídolos sejam subcelebridades e jogadores de futebol.

Entre 2005 e 2007, houve a moda do pseudo-esquerdismo, feito apenas para dar a falsa impressão de que os reacionários digitais são "modernos" e era ainda um tempo em que o protocolo juvenil é sempre adotar alguma simbologia considerada "avançada".

Eram pessoas que fingiram odiar símbolos direitistas como o Imperialismo, o FMI e políticos como George W. Bush, mas iam para os shoppings consumir os mais caros produtos de marcas imperialistas (como McDonalds e Nike). Fingiam admirar Che Guevara apenas para impressionar amigos esquerdistas e atrair uma base de apoio eclética para acompanhá-lo no vandalismo digital.

Passada a onda pseudo-esquerdista, quando a mídia de esquerda passou a denunciar membros reacionários da base governista - nomes como Jair Bolsonaro e Marco Feliciano integram partidos então aliados ao PT - , e com a ascensão de movimentos juvenis de direita, como Revoltados On Line e Movimento Brasil Livre, os vândalos digitais não precisaram mais fingir que eram "centro-esquerda" ou "esquerda-liberal" (como se autoproclamavam no Orkut) para impressionar outrem.

Além disso, os "cães-de-guarda" do "estabelecido", empolgados com o aparente êxito na defesa de valores estabelecidos pelo poder político, midiático e mercadológico, decidiram também partir para defender valores do mais puro preconceito social.

Eles atacavam homens que ficavam solteiros por mais tempo, como também pessoas que manifestavam desejo por indivíduos do mesmo sexo ou negros e nordestinos que começavam a se destacar para além dos limites impostos a seus estereótipos.

Pouco importava se o homem ficava solteiro por longo tempo devido ao trabalho, ele tinha que ter uma mulher, nem que seja uma "mulher-fruta" ou alguma mulher de vida vulgar e portadora de grave doença. Caso contrário, recebia xingações do tipo "Seu virgem!" "Encalhado!", "Navio de Estaleiro!" e outras humilhações.

Da mesma forma, esses internautas também não toleravam ver nordestinos conquistando profissões importantes no Rio de Janeiro ou negros saindo dos limites "toleráveis" de sucesso pessoal, como jogadores de futebol e músicos de "pagode" ou "funk", daí a reação furiosa das trolagens com comentários ofensivos de cunho racial ou étnico.

TROLEIROS INVADIRAM CONTA DA ATRIZ TAÍS ARAÚJO PARA FAZER ATAQUES RACISTAS. IMAGEM REPRODUZIDA DO BLOGUE DE FABÍOLA REIPERT.

Depois que a trolagem passou a ser denunciada com a repercussão do caso Maria Júlia Coutinho, jornalista da Rede Globo que por seu talento migrou do Bom Dia Brasil para o Jornal Nacional, irritando internautas racistas que despejaram comentários ofensivos contra a moça.

Anônimas também haviam recebido ataques semelhantes e, recentemente, foi a vez da atriz Taís Araújo, que recebeu no Facebook comentários que, entre outras coisas, comparavam seus cabelos cacheados a esponjas de aço para limpar louças e panelas, entre os habituais comentários racistas conhecidos.

Taís já gravou todas as imagens dos comentários, e juntou material dessas ofensas para envio à Polícia Federal. O caso já começa a ser investigado, e os internautas já foram identificados. A jornalista Fabíola Reipert publicou uma imagem em que os nomes dos racistas não são escondidos pelo mecanismo de embaçamento de imagem, como se costuma fazer.

Isso mostra o quanto os troleiros também cometem gafes e encrencas. Eles escondem também suas frustrações secretas, bem mais vergonhosas que as que atribuem a suas vítimas. Um internauta que "zoa demais" dos homens solteiros, por exemplo, pode ser o mesmo que não conseguiu conquistar uma mulher na noitada anterior ou simplesmente "brochou" durante uma relação sexual.

No caso dos comentários racistas, a gafe consiste no desconhecimento da definição de racismo como um crime inafiançável, previsto em lei. Embora a "zoada" neste sentido possa ser definida como "simples injúria racial" (que prevê punições brandas, como prestação de serviço comunitário), numa dessas confusões cometidas por brechas da lei, a intenção de racismo já é suficiente para seus envolvidos serem condenados a prisão em regime fechado.

Pessoas que "zoam" daqueles que acham que a gíria "balada" não é jargão de gente inteligente preferem ficar felizes com suas gafes diversas e até investir no cacófato "Tô na balada c'a galera" ("c'a galera"="caga"). Ver que troleiros "pagam mais mico" que as vítimas que querem ridicularizar é uma interessante ironia da realidade.

Além disso, a "galera unida" da trolagem pode se dissolver por pouca coisa. Um co-líder da trolagem pode ter um romance com a namorada do líder. Um troleiro que se acha destemido pode brigar com quem ele quiser, mas, por um acaso do destino, se desentender com quem não espera briga e até mesmo sofrer uma ameaça por causa de uma outra desavença.

Em todo caso, a intolerância quanto a pontos de vista diferentes do que é dominante mostram que essas pessoas tidas como "modernas" e "muito avançadas" são as mais retrógradas possíveis. Autoproclamadas "conectadas com o mundo", essas pessoas mostram seu terrível provincianismo na medida em que seu mundinho de valores estabelecidos não admite diferenças nem diversidades.

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