domingo, 27 de julho de 2014

No Brasil, "espíritas" fazem o que querem com os falecidos. Lá fora isso é muito raro

RAMONES - Todos os músicos da primeira formação da banda norte-americana estão falecidos.

O "espiritismo" brasileiro é dotado de certos "surrealismos". Em nome das "palavras de amor", qualquer fraude é permitida, e isso faz com que a imagem dos espíritos falecidos se torne coisificada, pois o que vale são apenas as mesmas mensagens de "amor, fraternidade, luz e caridade", pouco importando se elas vêm ou não dos falecidos a que tais mensagens são atribuídas.

No Brasil, se faz o que quer com os falecidos. Vide o caso de Raul Seixas, que virou marionete de seus pretensos admiradores. No âmbito espiritólico, ele foi transformado em uma caricatura exageradamente mística por conta de um suposto médium que nem especialista em rock é, além de ter se reduzido em mais um propagandista da religião "espírita".

Raul já é usurpado e manipulado fora do contexto espiritólico. Virou um pretenso ídolo de breganejos os quais fariam o saudoso roqueiro baiano torcer o nariz. E, recentemente, uma coletânea de música brega incluiu uma música de Raul, "Tu és o MDC de Minha Vida", em que o cantor parodiava o brega, que, pela bagagem musical exigente do roqueiro, nunca seria levada a sério por ele.

O Brasil já vive o tendenciosismo que até existe no exterior, só que lá as coisas não são tão escancaradas. Aqui manipula-se até o estado civil das pessoas, como funqueiras e dançarinas de "pagode" que tentam passar a todo custo uma imagem de "solteiras convictas", enquanto nos bastidores vivem relações estáveis com namorados ou maridos que vivem em lugares ignorados.

Aqui é o país onde ocorre a corrupção na política, no futebol, na mídia, em que grupos empresariais se ascendem de forma fraudulenta e até rádios FM adulteram audiência usando sintonias individuais em ambientes coletivos como se fossem "audiências coletivas", atribuindo a audiência de uma meia-dúzia de pessoas às centenas de milhares que passam perto dessas minorias.

E o que esperar da mediunidade num contexto desses? Pseudo-médiuns ou mesmo espíritos de farsantes falecidos se aproveitam da boa-fé e da emotividade das pessoas para adotarem a falsidade ideológica e usar falecidos para lançar supostas mensagens fraternais às custas de discursos ou histórias risíveis, que só parodiam e deturpam os perfis dos falecidos.

Aqui Raul Seixas, Renato Russo e Cazuza já foram parodiados por supostos médiuns. Sim, podemos dizer parodiados porque suas supostas mensagens espirituais se expressam de maneira caricata em relação ao que essas personalidades eram em vida.

A coisa acontece de qualquer forma que, se qualquer pessoa com um expressivo carisma e querido por muitos imitar a voz e os trejeitos de um falecido e dizer que fez psicofonia, boa parte das pessoas irá acreditar, se as mensagens forem "agradáveis" e expressar "amor e caridade".

Lá fora, em que pese o sensacionalismo midiático, a indústria de pseudo-celebridades, a corrupção político-empresarial e o astral nebuloso que faz com que neuróticos e até estudantes problemáticos saiam por aí atirando em qualquer um, é difícil lançar uma pseudo-mediunidade que é um fenômeno "privilegiado" no Brasil.

Imagine se algum charlatão que goza de um grande prestígio, dentro de um meio dito "espírita", decidir se passar pelo espírito do ex-baixista dos Ramones, Dee Dee Ramone, e escrever um livro meloso no qual ele conta sua relação com os também falecidos Joey Ramone, Johnny Ramone e, recentemente, Tommy Ramone, numa colônia espiritual onde todos aprenderam os "valores da doutrina cristã".

Lá fora seria ridículo, patético, quase nada convincente, e haveria forte risco de um processo judicial. Ninguém aceitaria alguém se passando por Dee Dee Ramone - que em vida escreveu uma biografia sobre sua antiga banda - e escrevesse um livro dizendo que o antigo quarteto foi para o umbral, depois para uma colônia espiritual e aí "descobrir os valores do amor e da luz".

Mas aqui deixam passar até pinturas falsificadas, supostamente mediúnicas, que destoam dos estilos originais dos autores atribuídos. Deixam passar poemas e prosas que sofrem uma queda de qualidade em relação ao que os autores atribuídos produziram em vida. Tudo por conta do carisma do suposto médium, das mensagens "positivas" transmitidas e do destino "filantrópico" de tais obras.

Paciência. Se um Ricardo Teixeira, dirigente esportivo marcado pela corrupção, é capaz de "comprar" a confiança de juristas, especialistas, políticos e jornalistas, e se um Michael Sullivan, que criou um esquema de corrupção na música brasileira, é capaz de "comprar" a confiança de artistas e intelectuais, um suposto médium "compra" a confiança de ativistas, filantrópicos e até de intelectuais diversos.

Aí o que se vê é isso. Em nome das "palavras de amor", se faz o que quer com os falecidos. O que parece bom, mas, na verdade, é uma crueldade de dimensões preocupantes. Afinal, os verdadeiros espíritos dos falecidos são impedidos e até desestimulados de se manifestarem e nem chegam perto dos chamados "centros espíritas".

Primeiro, eles não podem se manifestar porque outros já se manifestam em seus nomes. Segundo, porque a falta de confiabilidade dos "médiuns" brasileiros lhes constrange e os afasta, o que significa que, no final, quase sempre acabamos órfãos das mensagens de nossos entes queridos, que fogem entristecidos com as fraudes que acontecem nos círculos "espíritas".

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