domingo, 29 de maio de 2016
O estupro coletivo e a crise moral... e do Rio de Janeiro
A situação é bem típica. Diante de uma banca de jornais, em qualquer canto do Rio de Janeiro - podendo ser também Niterói, São Gonçalo ou Baixada Fluminense - , um engraçadinho, podendo ser até um "senhor" de seus 50 e tantos anos, vê as notícias sobre fatos ruins que acontecem no Estado.
"Não tem jeito mesmo. A gente não vai pra frente!...", diz, com uma cômica ironia, o referido sujeito, que no fundo não parece realmente preocupado com tais problemas. Parece um sujeito feliz querendo "reclamar de vez em quando" só para ter assunto com as outras pessoas, mas na verdade nem está aí para os problemas cotidianos, porque não é ele que vive esses problemas.
Há também outra situação. Nas mídias sociais, existe um certo problema. Relatado numa comunidade relacionada, esse problema é contestado por muitos internautas. Há uma quase unanimidade nas concordâncias, o questionamento é feito com pouca margem de desavenças.
De repente, um dos questionadores desse problema parte para a ação. Resolve tomar iniciativa e resolver esse problema. Aqueles que concordaram com ele no fórum da comunidade digital, de forma surreal, começam a reagir e se irritam com a atitude do parceiro, chegando mesmo a patrulhá-lo, mandar e-mails discordando da iniciativa dele, e até passando a defender o problema não como um problema, mas como algo que deve ser aceito, por mais "imperfeito" que fosse.
Esses dois dados surreais ilustram a decadência do Estado do Rio de Janeiro, que se torna o reduto de toda a decadência moral e cultural que acontece no Brasil. Ela acontece em outras partes do país, há em todos os Estados, mas essa decadência se torna mais intensa no Sul e no Sudeste, e encontra um caso extremo nas cidades fluminenses, sobretudo o Rio de Janeiro.
Recentemente, houve o caso de um estupro de uma garota de 16 anos. Um estupro coletivo, digno de sociedades primitivas. Uma garota foi visitar um namorado em Jacarepaguá e foi cercada por um grupo de rapazes. Foi dopada e estuprada. Quando voltou a si, viu que estava com cerca de 30 homens numa casa, e o estupro foi filmado. A ocorrência ocorreu no dia 21 e o vídeo, publicado quatro dias depois.
MACHISTAS NÃO PODEM MOSTRAR FRAQUEZA NEM TRAGÉDIA
Numa sociedade com um machismo decadente, mas resistente, a "cultura do estupro" é um reflexo mais cruel da hipersexualização que acontece na sociedade e que, na Internet tomada pela imbecilidade tirânica nas mídias sociais, encontra manifestações ainda mais entusiasmadas de apologia ao estupro e à coisificação da mulher.
É chocante que haja mulheres dispostas a fazer o papel de mercadorias sexuais, como Solange Gomes, no alto de seus 42 anos, e Renata Frisson, a Mulher Melão, de 33. Por ironia, a Mulher Melão tem a mesma idade que a primeira-dama do governo interino de Michel Temer, a jovem Marcela Temer, e ambas mostram os dois lados da mesma moeda machista: Marcela, a "serva do lar" da família patriarcalista, e Renata, o "brinquedo sexual" dos machos afoitos.
É uma sociedade em que a mulher é coisa e o homem é que é o ser. Uma sociedade machista e partiarcalista, que acha ofensa alguém advertir que feminicidas conjugais, que mataram suas mulheres em nome da "honra", também podem morrer de infarto ou câncer porque, como machistas, eles também descuidam da saúde.
É notório que machista odeia fazer exame de câncer, seja de fígado, pulmão ou acima de tudo próstata, e, se achando no direito de vida e morte da mulher, também se acha no direito de se julgar quando irá morrer. Mas os descuidos do organismo, causados pelo tabagismo, pelas drogas e álcool e por uma condução nervosa no volante, a vida do machista tende a ser mais curta do que se pensa.
O machista teima em achar que pode viver 90 anos, mesmo passando 50 anos ingerindo um coquetel de cerveja, bebidas alcoólicas "chiques", cocaína, nicotina e alimentação gordurosa. Sente-se ofendido quando alguém lhe diz que ele pode morrer de câncer ou infarto antes da "linear" idade de 90 ou 95 anos. O machista se acha um Deus, pode se destruir e se achar indestrutível.
E os que matam suas mulheres pouco importam se elas tinham muitos projetos de vida. Mas, contraditoriamente, eles é que têm medo de morrer, daí que vários feminicidas chegam a acionar a Justiça para regular a imprensa na cobertura de suas vidas, e, caso algum deles morra, não apareça uma nota de jornal. E, numa sociedade machista, um feminicida não pode morrer antes dos 85 anos, e a própria imprensa "oculta os cadáveres" de quem morre antes dessa idade.
Fica feio divulgar tragédias de machistas. Machistas são "fortes", divinos "apolos" do moralismo patriarcal, não podem mostrar sua fraqueza. Mas as mulheres é que são vítimas de tragédias, de humilhações, como a jovem de 16 anos que sofreu estupro coletivo sob os comentários animados de quem se divertiu com o vídeo divulgado nas mídias sociais.
A "CULTURA DO ESTUPRO"
Há até mesmo um protocolo machista nas mídias sociais no qual o internauta tem que exaltar e endeusar a mulher-objeto, tratando "musas" siliconadas como se fossem ícones da feminilidade, ou mesmo pretensos símbolos de feminismo. O feminismo é confundido com uma combinação de misandria e celibato, sob a desculpa de que as mulheres que "mostram demais" promovem seu sucesso sem a influência de maridos e namorados.
Há casos de mulheres siliconadas que tratam a "sensualidade" como um "trabalho". "Sem tempo para namorar, dedicação total à carreira", disseram várias delas. O "trabalho": explorar o corpo como uma mercadoria erótica de consumo por parte de um público de machistas afoitos. Os mesmos que ficam alegres quando uma "novinha" é estuprada e o vídeo aparece nas mídias sociais.
Vários internautas que tentaram romper esse ideal machista, esse culto à coisificação sexual, sofreram ataques. Um internauta que sugeriu a Solange Gomes se casar com um homem recebeu mensagem de uma mulher (?!) dizendo que a "famosa" poderia processá-lo judicialmente. Outros internautas que se definem como nerds também receberam comentários constrangedores quando afirmaram que as mulheres-frutas não fazem o seu tipo para namorar.
É a "cultura" da coisificação da mulher, da hipersexualização, que tem na "cultura do estupro" uma variante ainda mais radical. E que tem como "bons exemplos" figuras como Jair Bolsonaro, que disse a uma parlamentar que "não a estuprava porque ela não merece", e o ator pornô convertido em "educador" no risível governo Temer, Alexandre Frota, dizendo num programa de TV que estuprou uma mãe-de-santo com naturalidade e tom de piada.
O programa, o The Noite do SBT, é apresentado por Danilo Gentili, comediante do mesmo "clube" de reacionários de Frota e Bolsonaro. Frota narrou o caso como se narrasse um fato pitoresco e Danilo e a plateia se divertiram com gargalhadas histéricas, como se não fosse um estupro, e sim uma diversão.
O programa tem como banda musical de apoio o grupo de rock Ultraje a Rigor, cujo líder, Roger Rocha Moreira, outro ícone do direitismo sócio-político-midiático, havia apoiado a criação de um blogue ofensivo que parodiava o Escreva Lola Escreva, da professora e ativista Lola Aronovich. O blogue, intitulado Lola Escreva Lola, saiu do ar depois que foi denunciado à polícia.
O RIO DE JANEIRO CONTINUA LINDO?
Diante desse contexto, em que a maior parte do reacionarismo na mídia, na política e nas mídias sociais, se encontra no Rio de Janeiro, um Estado cuja decadência muitos recusam a admitir e tentam minimizar os problemas trágicos e de repercussão bastante negativa atribuindo-os à "rotina natural da modernidade urbana".
É um Estado cujo know-how político foi "exportado" através da figura de Eduardo Cunha, que chegou a ser presidente da Câmara dos Deputados e, político sem carisma nem expressão, tornou-se o símbolo da prepotência política sem controle. Mesmo afastado da presidência da casa legislativa e suspenso do mandato parlamentar, Cunha deixou um legado de ideias e pessoas adotadas pela equipe do presidente interino Michel Temer.
Temer é o típico "marido do século XIX", casado com uma moça com idade para ser sua neta. Cunha não chega a tanto, mas casou-se com a outrora admirável jornalista Cláudia Cruz, que havia sido musa cult entre os fãs de televisão em geral.
O governo Temer se cercou de um ministério machista, dotado de homens brancos com o perfil tecnocrático ou político dignos do auge da ditadura militar. A composição causou repercussão negativa e Temer, sem voltar atrás, tentou disfarçar o problema nomeando mulheres para secretarias ou outros órgãos de segundo escalão.
No Rio de Janeiro, o prefeito Eduardo Paes até prometeu dar assistência à adolescente vítima do estupro coletivo. Foi hostilizado e vaiado. Afinal, Paes defende como candidato à sucessão na Prefeitura do Rio de Janeiro um ex-secretário, Pedro Paulo Carvalho, acusado de agressões violentas à ex-mulher.
Mas isso faz sentido numa situação em que o Brasil vê uma coleção de fatos desastrosos e trágicos, além de uma porção de gafes. E muitas delas vindas do Rio de Janeiro, cuja decadência é demais para serem consideradas apenas "problemas corriqueiros da complexa vida moderna".
O Rio de Janeiro do ar poluído, das balas perdidas que matam inocentes, dos fascistas e brutamontes da trolagem nas mídias sociais, dos ônibus com pintura padronizada que confundem passageiros, dos produtos que somem rápido nos mercados e levam tempo para serem reabastecidos, da "rádio rock de verdade" que é feita por gente sem vocação para o gênero, do "funk" que glamouriza a pobreza, do coronelismo enrustido da contravenção e das milícias etc.
Não é, portanto, um Rio de Janeiro imponente de 60 anos atrás, e nem sequer uma sombra desses tempos. O Rio de Janeiro decadente que insiste em se impor como "modelo de vida" para o resto do país é apenas o palco principal dessa tragicomédia cotidiana, dessa avalanche de valores retrógrados que se multiplicam nos noticiários e geram uma imagem negativa do Brasil no exterior.
Daí que não dá para ignorar a queda vertiginosa do Brasil e do seu principal palco geográfico. Se o cidadão carioca típico, que diante das bancas de jornais e nas mesas de botequim, fica gracejando dos problemas cotidianos, transformando a decadência do Rio de Janeiro em piada sarcástica, é sinal que a situação é mais grave quando os próprios fluminenses ignoram essa decadência. Há poucos dias, pessoas jogavam bola felizes diante dos dois mortos da queda de uma ciclovia.
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