sexta-feira, 6 de outubro de 2017

Solteiras e casadas no contexto da eugenia social


Fora das redes sociais e ainda inédito na maioria das pautas dos debates progressistas, a seletiva abordagem da solteirice feminina, expressa recentemente em mais um sucesso, a música "Tô solteira de novo", da funkeira Valesca Popozuda, revela um grave processo trazido pela indústria do entretenimento.

A ideia, trabalhada pela mídia hegemônica, de que a "vida de solteira" só é o máximo entre mulheres famosas associadas ao entretenimento "popular", apreciado pelas classes de menor poder aquisitivo, revela não só uma incoerência ou uma abordagem pejorativa da mulher solteira, dentro da sociedade machista que é a brasileira, mas também um processo de eugenia social no qual, por outro lado, se desestimule a geração de filhos nas populações pobres, de ascendência africana ou indígena.

A incoerência, sabemos, se dá quando, em muitas famílias, a mulher que está solteira tem muitos filhos para criar, vive em subemprego, obtendo má remuneração, e vive sobrecarregada de tarefas, não raro insalubres, visando obter um pouco mais de dinheiro, porque as contas aumentam e o dinheiro nunca é suficiente.

A ausência da figura do marido complica tanto a situação de mulheres pobres que geralmente o filho mais velho acaba sendo um dublê de pai para os irmãos mais novos e até mesmo crianças pequenas, assim que começam a andar e falar, são designadas a vender pequenos produtos, como doces, para obter renda. O trabalho infantil acaba sendo uma consequência drástica para tal realidade.

Cria-se um contraste entre a imagem glamourosa da vida de solteira nas mulheres de classes pobres, como se estas pudessem ter um padrão de vida de classe média. Sabe-se que, nas classes abastadas, há mais facilidades da mulher ser solteira, mesmo com filhos, pois têm mais dinheiro para contratar babás e tem tempo para aprimorar suas vidas e se desligar, se for sua opção, da vida amorosa.

No entanto, o que o establishment do entretenimento faz, hoje em dia, é inverter as coisas. Empurra, para classes médias vitimadas pela baixa escolaridade e pela dificuldade de assimilar, compreender ou vivenciar certas novidades sociais por diversos motivos, os novos conceitos amorosos e familiares, cujas circunstâncias, na verdade, não permitem que sejam plenamene apreciadas pelas classes mais pobres, elas também bombardeadas por valores conservadores trazidos pela grande mídia.

A causa LGBT e a ideia da mãe solteira, causas que podem ser apreciadas com mais naturalidade pelas classes médias e altas, soam muito complexas nas comunidades pobres, sobretudo aquelas que são educadas pela mídia evangélica.

A sobrecarga profissional, a miséria, a baixa escolaridade e a influência religiosa dificultam a plena absorção dessas realidades, que são assimiladas à força pelas jovens pobres que são induzidas a desprezar os homens de sua própria afinidade e mesmo meio social.

O afastamento das moças pobres de homens afins, a ponto deles serem vistos como "repulsivos" só porque aderem ao prazer masculino de jogar bola, e de serem tidos como "inacessíveis", é uma forma da mídia elitista mas "popular" promover a desunião das classes populares, evitando a solidariedade já no âmbito da vida amorosa, além de dificultar a formação de novas mães a renovar as populações das comunidades pobres com novos filhos.

A falta do homem pobre, trabalhador, que carrega objetos pesados, que já passa o dia fora, na sua rotina de trabalho, para sustentar a família, é estimulada por uma mídia "popular" que, embora seja bastante consumida pelas classes pobres, é controlada por oligarquias regionais, que apelam para esse higienismo cruel nas comunidades pobres.

E é isso que está em jogo quando se observa um grande contraste entre o perfil de mulheres que ficam solteiras, entre as famosas. As que exercem um maior apelo e representatividade nas mulheres pobres são as que mais enfatizam a vida de solteira, enquanto as que possuem um apelo voltado para classes mais abastadas são geralmente mulheres casadas, com namorados ou, se solteiras, sonhando com um casamento "para a vida toda".

O discurso chega a ser contrastante. A musa "mais popular" fala, por exemplo, que "está solteira por causa do trabalho". Já a musa "mais elitista", se está solteira, "não quer ficar a vida toda sozinha" e tanto se empenha em procurar um namorado ou um amigo, evitando o máximo que a solteirice permaneça por mais de seis meses.

E olha que, enquanto as mulheres de apelo "mais popular" estão associadas a "trabalhos" de apelo "sensual", mostrando demais as formas físicas, maior trabalho mesmo fazem as famosas de apelo "mais elitista", como atividades de jornalismo, apresentação de TV e atuação. É até irônico musas "populares" falarem que estão sozinhas "pelo trabalho" enquanto as de apelo "mais de elite" trabalham mais e ainda continuam casadas e com filhos.

O que se leva em questão é que a mídia do entretenimento está estimulando tais apelos para que se promova uma eugenia social. A eugenia é um método de seleção social na qual se dá maior vantagem à raça considerada "superior" pelos grupos dominantes, cabendo a esta mais estímulos para a renovação de suas gerações, com novos filhos.

Isso significa que a grande mídia, no Brasil, luta para frear a renovação de gerações de pessoas de origem negra ou indígena, apelando, de um lado, para a violência desenfreada, sobretudo pelo abuso policial, violência que, segundo estatísticas, mais mata jovens pobres de origem negra e índia, e para complementar promove uma campanha agressiva para as mulheres pobres ficarem solteiras e evitarem ter filhos, através da chamada cultura popularesca.

Músicas de "funk", "forró eletrônico", "sertanejo" e axé-music são maciçamente tocadas pelas rádios para desqualificar relações amorosas. As letras falam de conflitos amorosos, traições, misoginias e misandrias, e complementam também a imagem que a mídia policialesca trabalha do homem pobre, a mais negativa possível, associando-o às ideias de agressividade, desonestidade, covardia, ganância, indecisão e insegurança.

A eugenia à brasileira, "inocentemente" trazida por "canções de solteirice" que certas cantoras lançam nas rádios, faz, neste caso, um processo de diminuir as populações de origem negra e índia que consomem estes tipos de música. A diminuição, além da violência que, em doses "industriais", leva para o túmulo um sem-número de homens de origem negra e índia ou mestiços, chamando a atenção de entidades mundiais de direitos humanos, também se dá pelo desestímulo à maternidade.

A ideia de "mãe solteira" também influi, nas classes populares, na realidade da mãe-avó, porque a moça pobre, sexualmente afoita, torna-se mãe num namoro bruscamente encerrado e, imatura ou no começo de sua vida profissional, a jovem tem que deixar, para a mãe desta, o cuidado da criança, criando a situação da mãe-avó que se torna "mãe" de seu neto.

A situação é complicada para as classes populares, mas nem mesmo as chamadas "esquerdas festivas" - setores da esquerda ideológica que glorificam fenômenos "comportamentais" do espetáculo do entretenimento - conseguem enxergar o problema, porque até as mulheres de classe média que seguem esta orientação ideológica acham o máximo, no seu preconceito elitista, que uma mulher pobre possa ser mãe solteira mesmo sob o preço da sobrecarga que tal rotina significa.

A eugenia social no Brasil se torna intensa e, logo quando os preconceitos sociais passam a se tornar mais explícitos e o desmonte dos direitos trabalhistas passa a ser efetivado no governo Michel Temer, vem uma música de "funk" falando de "vida de solteira", uma aberração se percebermos que nenhuma cantora realmente solteira iria ostentar sua "solteirice" numa letra de música, respeitando sua própria privacidade e discrição.

Mas o entretenimento "popular" está a serviço de um processo de imbecilização e higienização social, promovendo o tempo todo a desmobilização popular e a "limpeza social" que, desde os primeiros tempos da música cafona, queria fazer os homens mais velhos morrerem pelo lazer mórbido do álcool.

O esforço doentio do "sistema" em diminuir as classes populares pela bregalização, pela violência e pelos ideais deturpados da mulher solteira é um quadro sutil de seleção social e um processo das elites em "europeizar" a população brasileira, só permitindo que mulheres mais abastadas tenham seus maridos e filhos e possam renovar as gerações deste status étnico-racial e social.

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