quarta-feira, 3 de junho de 2015

Por que se "religiosizam" ou "divinizam" as coisas?


Do aumento de preços à pintura padronizada nos ônibus, "diviniza-se" muito o arbítrio humano. Dependendo do status das pessoas, as suas piores decisões são aceitas como se fossem "ordens divinas", sem que as pessoas reajam com qualquer protesto, a não ser um frágil desabafo nos bate-papos cotidianos.

"Diviniza-se" e "religiosiza-se" coisas que nem são assim tão maravilhosas, e que chegam mesmo a serem desastrosas ou danosas. Mas elas são aceitas comodamente, porque vêm "de cima", e em certos casos chegam a ser defendidas com muito ardor, mas sem qualquer tipo de razão.

Por exemplo, a que interessa uma FM do Rio de Janeiro, como a Rádio Cidade, ser rádio de rock? Ela não começou no segmento rock, nunca teve tradição no gênero e, quando decidiu investir nele, foi de maneira desastrosa, sem pessoal especializado e sem satisfazer a cobertura do mais básico na cultura rock. E, o que é pior: a Rádio Cidade tem mais competência para o pop eclético e não para o rock.

Mas a Rádio Cidade tem fanáticos histéricos que querem ver a rádio vinculada ao rock de qualquer maneira, na marra mesmo, se possível monopolizando reserva de mercado e tudo. E ainda se irritam, ao ponto de ficarem furiosos, quando são questionados. Parece tragicomédia surreal, meio cinema de Luís Buñuel, meio literatura de Franz Kafka. Só que é a realidade brasileira.

Esses ouvintes da Rádio Cidade se comportam como se fossem beatos medievais. Sem entender realmente o que é rock, o tratam como se fosse uma "religião", com todo o seu engodo de mistérios e mitos. Não sabem a diferença entre o som de uma guitarra ou de um liquidificador, mas fazem selfies botando a língua para fora ou fazendo o sinal do capeta com as mãos.

Isso é um exemplo de divinização, de "religiosização". E "religiosizar" não é entender a verdadeira natureza da coisa, até porque 95% das músicas que os ouvintes da Rádio Cidade odeiam são ligados ao rock antigo, ao rock alternativo ou mesmo ao punk e heavy metal.

Mas se eles odeiam de Led Zeppelin a Ramones, de Velvet Underground a Smiths e, se deixarem, sobra farpas até contra Renato Russo e Raul Seixas, que roqueiros eles são? Que roqueiros são esses que se dizem fãs de Cure, AC/DC e Deep Purple mas não suportam mais do que uns segundos de acordes de "Boys Don't Cry", ""Back in Black" e "Smoke on the Water"?

MÍSTICA RELIGIOSA TRAZIDA PARA O COTIDIANO

É a mística religiosa trazida para o cotidiano. A coerência não tem valor, e questionar a incoerência ainda indica riscos de reações violentas na Internet. Isso porque, como a mística religiosa, a "religiosização" das coisas comuns apela para fé cega em detrimento da razão, daí a herança da metodologia do Catolicismo medieval, fonte de muitos absurdos da antiga historiografia cristã.

O que é um grupo de jovens que quer que a Rádio Cidade seja "rádio rock" na marra, sem perguntarem se isso realmente tem necessidade - até a boa audiência da emissora se deve mais a absorção de ouvintes de outras FMs, de pop ou de brega, do que de roqueiros que, no Grande Rio, continuam sem rádio - , senão a tradução atual da mística medieval da fé sem razão?

Da mesma forma, busólogos que acreditam que um logotipo de prefeitura ou governo estadual em diferentes empresas de ônibus forçadas a adotar uma mesma pintura, em troca de "regalias" como ar condicionado, ônibus articulados, "bilhetes únicos" e outros sensacionalismos, também segue uma mística medieval.

"Religiosiza-se" a pintura padronizada nos ônibus e os "beatos de carimbo de prefeitura" se irritam quando são criticados e xingam os discordantes de "viúvos de latas de tinta", entre outras baixarias. Em troca de um BRT e da obrigatoriedade do ar condicionado, aceitam o nocivo arbítrio da pintura padronizada, que confunde os passageiros comuns e camufla a corrupção político-empresarial.

E aí entra mais uma vez o surrealismo. Não adianta dizer que a pintura padronizada contraria princípios da Lei de Licitações, do Código de Defesa do Consumidor e até da Constituição Federal, prejudicando desde o interesse público até a livre iniciativa empresarial - as empresas, particulares, são obrigadas a usar a "imagem" do poder estatal, sob pretexto de "consórcios", "tipos de trajetos" ou "tipos de ônibus". Os "beatos de São Carimbo" não querem saber.

Afinal, todos os mais coerentes argumentos vão contra a "divinização" da prática arbitrária e, acima de tudo, contrariam a reputação do arquiteto Jaime Lerner, feito "Deus na Terra" dentro do âmbito do transporte coletivo, trazido por seus "divinos" herdeiros como Alexandre Sansão, Carlos Roberto Osório e outros. A "divinização" de pessoas acaba também sendo um complemento para a "religiosização" das coisas.

E aí vemos que é difícil derrubar reputações de pessoas "divinizadas". Mesmo os piores escândalos não os abalam. Pessoas como Jaime Lerner, Luciano Huck, Ivete Sangalo, Pedro Alexandre Sanches, Mário Kertèsz, Neymar dos Santos Jr., ou "instituições" como a Rádio Cidade e a Rede Globo, gozam desse "poder divino" que parece estar acima de qualquer prejuízo.

Em certos casos, a "divinização" é feita mediante condições que envolvem status acadêmico, visibilidade, sucesso financeiro, reputação tecnocrática etc. Jaime Lerner é tão "filho da ditadura" quanto Paulo Maluf, mas é beneficiado pelo status tecnocrático. Luciano Huck tem uma visibilidade que o faz influente até nos hábitos e linguagem de uma parcela de seus detratores.

E isso tem muito a ver quando brasileiros endeusam Chico Xavier mesmo com sua trajetória confusa e suas atividades de valor bastante duvidoso. Sem perceberem que sua doutrina não passa de uma versão "pirata" de Espiritismo, com todo o seu humilhante festival de incoerências e absurdos, eles expõem seu fanatismo agressivo que tenta se impor a qualquer argumento lógico.

É o Brasil que aceita que os preços sejam aumentados sem razão. Vivemos num país confuso. Muitos brasileiros não sabem bem o que querem ou o que precisam. E sofrem e são prejudicadas sem saber. Enquanto isso, se apegam a ilusões que não passam de adoçantes para suas vaidades pessoais feridas pela complexidade da vida.

Daí quererem que a Rádio Cidade seja roqueira sem saber por que. Ou aceitarmos uma medida nefasta como os ônibus com pintura padronizada que desafiam as atenções de qualquer um, já sobrecarregado com seus próprios problemas e obrigações.

Aceitamos ser prejudicados visando em troca um BRT, ou a vinda de uma grande banda de rock todo ano, ou resignados porque os que querem nosso prejuízo são pessoas dotadas de status, formação acadêmica e outras qualidades "superiores".

E ainda temos coragem de acreditar que nosso prejuízo é "benéfico" porque nosso algozes, dotados de "sabedoria" e "prestígio", "sabem" de nossas necessidades. Nós é que somos forçados a acreditar que não sabemos o que queremos. Triste absurdo.

As pessoas deixam decair sua qualidade de vida, em todos os sentidos, acreditando que isso favorecerá os avanços tecnológicos e o sucesso financeiro dos detentores do poder, a bajular e explorar o povo com seus espetáculos diversos, dos musicais e esportivos aos tecnocráticos e políticos, enquanto, "daqui de baixo", o povo sempre fica no prejuízo.

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