O FOTÓGRAFO JEAN MANZON E O JORNALISTA DAVID NASSER FORAM OS PRIMEIROS A QUESTIONAR O MITO DE CHICO XAVIER.
Em muitos casos, pessoas que cometem certos erros parecem pertinentes em certas posturas, comentários ou mesmo denúncias, que às vezes precisamos ouvi-los e, se for o caso, até lhes dar razão pelo que eles, mesmo dotados de tantas falhas, expõem.
No "espiritismo" brasileiro, a negligência fez com que pessoas consideradas "problemáticas" fossem deixadas de lado, muitas vezes por seus defeitos existentes ou presumidos. Foi essa negligência que fez com que suas advertências fossem desprezadas, em benefício ao mito de Chico Xavier, que se alimentou ao longo dos anos.
Só entre as década de 40 e 50, várias advertências ou denúncias contra Chico Xavier foram neutralizadas, porque os denunciantes estavam associados a problemas ou posturas errantes, o que garantiu a imunidade de Chico, mesmo diante de denúncias dotadas de provas e argumentos mais consistentes.
Chico pôde até mesmo abafar o caso judicial do processo movido pelos herdeiros de Humberto de Campos ao se apropriar da comovente história de Irma de Castro, prematuramente falecida, e se aproveitando da comoção do viúvo da moça, Arnaldo Rocha, para transformá-la num suposto ícone espiritólico.
Alguns casos, como o dos herdeiros de Humberto, mostram como a vida é complexa e não cabem maniqueísmos fáceis. Seria cômodo que dividíssemos o "bem" e o "mal", respectivamente, pondo de um lado o "bom" caipira mineiro e aqueles que agiram contra sua mediunidade irregular e nem sempre exercida. Mas não é bem assim que acontece.
NASSER E MANZON
Um dos casos observados é a reportagem "Detetive do Além", produzida pela revista O Cruzeiro em 1944 pela famosa dupla David Nasser, repórter, e Jean Manzon, fotógrafo francês radicado no Brasil. Os dois expressavam desconfiança em relação à mediunidade de Chico Xavier.
O que pesa contra os dois é o fato de que ambos teriam sido envolvidos, ao longo dos anos, em posições reacionárias ou desonestas. Sobretudo da parte de David Nasser, mas sem excluir seu famoso parceiro.
David Nasser foi acusado de inventar uma reportagem sobre uma suposta espiã russa, na verdade um devaneio sensual que Nasser criou para impulsionar as vendas da famosa revista de Assis Chateaubriand, o dono dos Diários Associados a que o repórter chamava carinhosamente de "O Velho Capitão".
Além disso, Nasser explorou o sensacionalismo policialesco décadas antes dos Brasil Urgente e Cidade Alerta que envergonham a TV brasileira de hoje, quando, como colunista de O Cruzeiro, explorava de forma grotesca o julgamento dos três assassinos (só um deles continua vivo hoje) da jovem Aída Cúri, morta ao cair de um prédio em Copacabana, Rio de Janeiro, em 1958.
Nos últimos anos de vida, Nasser, que até escrevia muito bem, era inteligente e um notável compositor musical, manchou sua vida apoiando um grupo de justiceiros, a Escuderia Le Coq, um dos principais grupos do chamado Esquadrão da Morte que agiam no Brasil.
Jean Manzon, por sua vez, realizou vários documentários de propaganda do Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (IPES), entidade de fachada patrocinada pela CIA (órgão de informação dos EUA) para pregar a derrubada de João Goulart e na instauração, em 1964, de uma ditadura militar que durou 21 anos no Brasil.
OS CATÓLICOS RADICAIS
Quanto ao livro Parnaso de Além-Túmulo, de 1932, um grupo de católicos radicais, numa época em que Chico Xavier havia sido excomungado do Catolicismo por causa de suas aventuras "mediúnicas" - mas nada que o faça um verdadeiro discípulo de Allan Kardec, como aqui sabemos - , resolveu fazer uma denúncia sobre como foi feito o livro.
Era uma tendência que se via até mesmo em escritores famosos e prestigiados como Tristão de Athayde, pseudônimo do ativista católico Alceu Amoroso Lima, que havia dito que Chico Xavier estava "a serviço do demônio".
O grupo de católicos denunciou que Parnaso de Além-Túmulo em nada havia sido psicografado, e que seu conteúdo, de qualidade inferior ao que os supostos autores produziram em vida, teria sido feito por uma comissão de escritores ligados à Federação "Espírita" Brasileira.
A tese foi considerada "absurda" e "inconcebível" nos meios ditos "espíritas", mas a divulgação das cartas entre Chico Xavier e o então presidente da FEB, Wantuil de Freitas, por Suely Caldas Schubert no livro Testemunhos de Chico Xavier, confirmou mesmo acidentalmente a "absurda tese", já que em várias cartas Chico consultava e pedia colaboração dos dirigentes da FEB na reelaboração do livro.
OS HERDEIROS DE HUMBERTO DE CAMPOS
A obsessão de Chico Xavier por Humberto de Campos se deu quando este, ainda vivo, fez um comentário um tanto irônico ao livro Parnaso de Além-Túmulo, entre admirado pelo conteúdo poético do livro, mas um tanto desconfiado da veracidade do conteúdo, apesar de admitir semelhanças nos estilos poéticos entre os textos "espirituais" e os que os supostos autores fizeram em vida.
Foi Humberto falecer, doente, em 1934, para Chico, anos depois, a partir de um suposto sonhodo anti-médium com o escritor em 1935, se apropriar do carisma do escritor, atribuindo a ele algumas obras, possivelmente a conselho do traiçoeiro Emmanuel.
O primeiro dessa série foi Brasil, Coração do Mundo, Pátria do Evangelho, de 1938, que claramente mostrou um conteúdo bastante confuso e irregular para ser atribuído à pena do autor de A Serpente de Bronze, Poeira, A Bacia de Pilatos e O Brasil Anedótico.
Em 1944, Milton Barbosa tornou-se advogado de Catarina de Campos, viúva do escritor, e dois dos três filhos - a filha não quis participar da ação - , que queriam verificar se o livro em questão era realmente uma psicografia do espírito de Humberto de Campos ou não.
O aspecto "errôneo" atribuído aos familiares é a acusação de usura, já que eles exigiam participação no recebimento dos direitos autorais se caso a autoria de Humberto fosse confirmada. Tal acusação é improcedente, mas prevaleceu nos meios "espíritas" brasileiros. Todavia, Milton Barbosa observou que a obra apresenta qualidade inferior ao que o autor produziu em vida.
AMAURI XAVIER PENA, O SOBRINHO DE CHICO
O quarto caso envolve o sobrinho de Chico Xavier, Amauri, filho de Maria Xavier, irmã do anti-médium. O jovem mineiro, admirador de poesia e clássicos literários, havia sido pressionado a seguir a carreira do tio, devido ao vínculo, forçado pelo pai, a um "centro espírita" local.
Amauri teria escrito um livro pretensamente psicográfico, Os Cruzálidas, que iria atribuir a Luís de Camões, o famoso escritor português. O livro seria promovido como se fosse uma "continuação espírita" de Os Lusíadas.
Corroborando a hipótese de que Parnaso de Além-Túmulo não teria sido psicografado, mas composto por pastiches escritos por Chico com a ajuda de uma equipe editorial da FEB, Amauri admitiu que havia colaborado na última edição amplamente reformulada, a sexta, lançada em 1955 e considerada "definitiva".
Amauri denunciou, em 1958, ao jornal mineiro Diário de Minas, que Chico Xavier não seria médium e que mesmo o próprio Amauri inventava coisas pela sua própria imaginação, nada sentindo de estranho nem de sobrenatural. A denúncia causou um grave escândalo, mas os meios espiritólicos tentaram desqualificar o rapaz, chamando-o de "traidor do próprio tio".
Outro ponto que favoreceu essa campanha contra o jovem é que ele, que faleceu jovem de hepatite, tão cedo sucumbiu ao alcoolismo e vivia depressivo. Os meios espiritólicos atribuem a isso um processo de "obsessão", desculpa que equivale, no caso dos católicos e dos neo-pentecostais (Igreja Universal e similares), a "ser tomado pelo demônio".
VIDA COMPLEXA
Concluímos neste caso que a vida é bastante complexa para criarmos "clubes" de gente boa e de gente má, às custas de maniqueísmos fáceis. Os denunciantes envolvidos cometeram seus erros, é verdade, embora no caso dos herdeiros de Humberto de Campos, soa pesado e equivocado atribuir a eles o interesse de faturar em torno do legado do falecido escritor.
Se eles erraram nas suas falhas específicas, não é por isso que eles estejam equivocados diante do caso Chico Xavier. Pelo contrário, neste caso é justamente no lado oposto que estão os argumentos mais consistentes, porque, nesta situação, são as pessoas "problemáticas" que acertaram, diante de tantas irregularidades verificadas no caso do anti-médium mineiro.
Várias demonstrações foram feitas que põem a mediunidade de Chico na berlinda. Pastiches, plágios, negociações com dirigentes "espíritas" quanto a alterações de livros, apoio a fraudes, pregações moralistas etc.
Neste caso, pouco importam os erros que não condizem ao "espiritismo". Importam, sim, os erros de Chico Xavier, muito graves para sua reputação de pessoa supostamente iluminada. São esses erros que importam na avaliação de sua função como suposto médium e pretenso líder espírita, e não os erros externos daqueles que o denunciaram. Para tudo existe um contexto.
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