sábado, 11 de julho de 2015

O Brasil e a síndrome do "Médico e o Monstro"


Qual é a lição do livro O Médico e o Monstro (Dr Jekyll and Mr. Hyde), clássico da literatura escrito por Robert Louis Stevenson, para o Brasil? Será porque as pessoas têm um lado bom ou mau? Embora essa questão seja considerada, ela não é o principal aspecto na comparação que pode ser feita para nosso país.

A comparação mais exata é a luta permanente do pretensiosismo humano em ser uma coisa e agir como se fosse outra, reparando com aparências e procedimentos diversos. Geralmente as pessoas costumam ser algo mais vantajoso e avançado, mas adotam procedimentos mais retrógrados, e tentam agradar os dois lados através de um contraditório jogo de aparências e conveniências.

O "espiritismo" brasileiro segue essa linha. Religião supostamente baseada nas ideias de Allan Kardec, ela no entanto fundamentou seus valores com base no Catolicismo medieval português, vigente desde o Brasil colonial e trazidos pelos padres jesuítas que, já desencarnados, estariam protegendo a quase totalidade dos "centros espíritas" do país.

Como na obra de Stevenson, o "espiritismo" tenta às vezes agir de uma forma ou agir de outra. Numa, parece que se aproxima cada vez mais dos católicos, falando de Maria, Mãe de Jesus, usando jargões católicos como "cordeiro", "seara" e "bênçãos" e tudo o mais.

Mas, de repente, os "espíritas" voltam e fazem as eternas "juras de amor" a Allan Kardec, enfeitando periódicos espíritas com fotos de universo cósmico, bajulando cientistas, falando sobre Psicologia, dando seu pitaco sobre o pensamento de Einstein, Newton, Galileu e por aí vai.

Infelizmente, o Brasil costuma apreciar e exaltar esse comportamento esquizofrênico, que é erroneamente visto como "meio-termo". Embora seja um (falso) equilíbrio entre uma nova ideia e procedimentos tradicionais de uma ideia anterior, ela revela um problema que é a questão mal resolvida das pretensões e limites das pessoas.

É aquela ideia do marido infiel, que passa a noite se divertindo com as amantes, mas que sempre reserva um passeio na praça, nas tardes de domingo, com a esposa e os filhos, dando a falsa impressão de fidelidade absoluta e incorruptível. E isso tem muito a ver com um país que tenta trabalhar o novo quase sempre em bases velhas.

Tivemos um movimento iluminista que ainda se manteve em preconceitos escravagistas que demoraram a ser superados. Tivemos uma República implantada não em bases humanistas, como nos exemplos da França e dos EUA, mas de um golpe movido por escravagistas e coronelistas descontentes que colocaram um monarquista (!) para ser nosso primeiro presidente.

Recentemente, temos partidos de esquerda que se perecem com políticas neoliberais e alguns procedimentos bastante conservadores que contrastam com as promessas de transformações profundas que tais agremiações políticas defenderam no discurso.

Mas até a cultura jovem mostra exemplos do novo feito em bases velhas, como projetos de "rádios de rock" pelas emissoras de rádio 89 FM (SP) e Rádio Cidade (RJ) baseadas em velhos procedimentos do radialismo pop mais rasteiro.

As duas rádios, sabemos, personificam bem o tema de Stevenson. Em certos momentos, a 89 e a Cidade parecem voltar-se para o pop, com programas de piadas e um padrão de locução escancaradamente pop, mas, em outros momentos, tentam dar a impressão de que radicalizaram no rock, num esforço vão em ir para dois lados e servir às duas tendências ao mesmo tempo.

Chico Xavier, então, era a contradição em pessoa. Um homem que se alimentou por contrastes verbais e ideológicos, um católico que quis ser "espírita", um sub-escolarizado de leitura razoável que quis ser "sábio", o interiorano tido como o "dono do mundo" etc. Um rol de contrastes, um permanente jogo de ser-e-não-ser que ludibriou as massas.

Para quem não é muito esclarecido, isso é maravilhoso. É confortante algo ou alguém ser uma coisa e ser outra ao mesmo tempo, o que, para esse nível de pessoas, soa como um misto de versatilidade, imparcialidade e despretensão. Grande erro, que só é visto como acerto num país dotado de conceitos confusos como o Brasil.

Aqui, pela crença que as pessoas têm das coisas, um conceito de alguma coisa parece percorrer 360 graus de significados opostos entre si. E isso tem muito a ver com uma tradição que já permitiu uma aberração gramatical da língua portuguesa de definir "algum" e "nenhum" como "sinônimos", algo considerado normal até em linguagem culta!

Só que, quando existe um esclarecimento muito maior, procurarmos nos esforçar para não aceitarmos as contradições extremas que fazem algo ou alguém serem uma coisa e outra ao mesmo tempo. Que qualquer pessoa está sujeita a contradições, isso é verdade, mas como os erros, se elas são possíveis, isso não quer dizer que elas devam se manter aberrantemente opostas nem serem usadas como motivo de orgulho e vaidade.

As contradições existem para serem resolvidas e as pessoas, pelo menos, que possam cometer o menor número possível de contradições, com o menor nível de contraste observado nas mesmas. Querer que as coisas sejam e não sejam ao mesmo tempo não é buscar a coerência sem risco de contradição, mas antes transformar as contradições num espetáculo de incoerências, que só trazem confusão e insegurança a todos.

É essa a lição do médico-monstro de Stevenson. A lição de ser-e-não-ser que alimenta vaidades pessoais e faz com que oportunistas se aproveitem das contradições para permanecerem no poder, obter vantagens pessoais e lucrarem às custas da confusão dos não-esclarecidos.

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