CAPA DA EDIÇÃO DA BIZZ QUE PUBLICOU ENTREVISTA COM RAUL SEIXAS.
COMENTÁRIO: Compare a entrevista abaixo, com o cantor Raul Seixas publicada na revista Bizz de março de 1987, com as mensagens pueris atribuídas a seu "codinome" Zílio, supostamente atribuído a ele no mundo espiritual. Vai uma diferença muito grande entre um e outro.
Se Raul Seixas faz alusões a seus sucessos ou a sua experiência mística, é porque o contexto permite. Mas não é uma coisa gratuita que se nota em Zílio, que é capaz de fazer meros trocadilhos aleatórios de sucessos de Raul, como "nossa sociedade alternativa é outra, e diante de nossos desafios cósmicos, vamos tentar outra vez e pegar o trem das sete das nossas vidas".
Não, nada disso. O que se observa é que Raul responde as questões de forma "crua", feito um roqueiro em seu típico temperamento, e seus depoimentos nada lembram o tom melífluo que Zílio escreve em seus textos ingênuos, demasiado místico-religiosos até para o que Raulzito teria sido em sua fase mística.
Até mesmo a imagem de Raul Seixas vestido de mago soa mais irônica que reverente. Raul era um crítico ácido dos vícios da sociedade, fez canção até contra a banalização da música de protesto, "Eu Também Vou Reclamar", imaginem então o que ele poderia escrever a respeito do misticismo viciado das pessoas que se acentuou nos anos 90.
Quem observar Raul em suas últimas entrevistas, verá que qualquer uma delas põe uma pá de cal ao mito de Zílio, enterrando de vez a falsa associação de Raul Seixas às pregações moralistas do Espiritolicismo.
RAUL SEIXAS – Uah-Bap-Lu-Bap-Lah-Béin-Bum!
Entrevista Revista BIZZ – Março 1987 - Reproduzido no Blog de Raul Seixas Oficial Fã-Clube
Atenção roqueiros! Vem aí o Uah-Bap-Lu-Bap-Lah-Béin-Bum!, a aula de rock n’roll de Raul Seixas. Para falar do disco, ninguém melhor que ele próprio. Logo no início da entrevista, Raul deslanchou a explicar minuciosamente música por música, acorde por acorde, letra por letra.
Entrevistar Raul Seixas não é tarefa fácil. Pioneiro do rock nacional – e personagem controvertido -, o que há de novo para perguntar a ele? Na verdade, logo, logo, descobri que sempre há algo de novo, inédito e rico para conversar com Raul.
Antes, porém, procedi aos levantamentos. Choveram cópias de reportagens – 60% eram lixo; 25%, razoáveis; e 15%, aproveitáveis. Êta jornalismo nacional!!! Mas havia uma esperança, um último trunfo de pesquisa – Sylvio Passos (presidente do mais importante fã-clube de Raul, devidamente registrado num box no final desta matéria). Lá fui eu até o Parque Edu Chaves (periferia de São Paulo) e quase me afoguei no oceano de informações que Sylvio guarda sobre Raul. Por onde começar? E os calafrios na espinha aumentavam. Fiz poucas anotações. No último minuto, com a b* na cadeira e os dedos colados nas teclas, formulei 37 perguntas. Achei que daria. Tinha que dar. Vamos lá! Seja o que Deus quiser!
Mil telefonemas para acertar a entrevista. Desencontros na primeira tentativa. Tentamos mais uma vez. Chego a casa de Raul na hora marcada. Toco a campainha. “Quem é?”, pergunta um garoto. “Sônia Maia, da revista BIZZ”, respondo. De repente, sai de lá o próprio Raul. “Entre, meu amor!” . E a agonia tinha terminado. Ou melhor, tinha apenas começado.
“Você tem a fita do novo LP aí?”, foi a primeira pergunta. “Sim, sim. Está sem mixar. Vamos subir e ouvir”, ele responde.
Raul aperta a tecla play do gravador e os primeiros acordes começam a soar. Imediatamente ele começa a falar do disco. “Esta chama ..Quando Acabar, o Maluco Sou Eu..”. E ele justifica o título: “Porque eu fiz esse disco para os roqueiros ouvirem, para eles não deixarem o rock..n..roll morrer… Ela tem uma guitarra bem Chuck Berry e um violão de 12 cordas mais para os Byrds. É uma verdadeira mistura raulseixista”. Raul se detém numa frase e ri: “Veja: ..O Papa tem de se tocar e sair pelado pela Itália..”, repete junto com a música.
A próxima é “Paranóia 2″. É um rock surreal, mistura meio jazzística, mais ou menos na linha de ..Não Me Pergunte Por Quê.. (do LP Mata Virgem, de 78) e, também, de ..Eu Sou Egoísta.. (do LP Novo Aéon, de 75)”, diz ele. “Gente” entra pelos ouvidos e a emoção aumenta. É, de fato um, superdisco, uma síntese de tudo que Raul já fez, moldado pela sonoridade atemporal do rock mesclado a várias correntes – e ele mostra-se orgulhoso com o resultado final do LP. “Esta música tem um ritmo novo, criado no estúdio mesmo”, explica. “..Como o Diabo Gosta.. (a seguinte) é um rock/country, mais ou menos no estilo/humor dos anos 50. É baseada na minha história com a Lena (atual mulher de Raul).”
“Cowboy Fora da Lei” começa a rolar e ele solta: “É a que mais se aproxima da música-mensagem. Falo de Tancredo e de figuras como Luther King e Ghandi”. Pergunto se Raul acha que Tancredo foi assassinado. Ele responde: “Acho”. Aproveito a pausa para dizer que não gostei da versão que o Camisa de Vênus fez de “Ouro de Tolo”. “Eu também não gostei. Perdeu o sentido que eu quis dar”, completa Raul.
“Cantar”…”é uma balada mais ou menos no estilo Cliff Richard – um indiano que aconteceu na Inglaterra antes dos Beatles. Essa outra está censurada – chama-se ..Check-Up… Eu não entendo. Cada fase eles (a censura) querem alguma coisa. Falo dos meus comprimidinhos, nada mais além disso. Essa também está censurada: ..Não Quero Mais Andar na Contramão… Eu não entendo”, lamenta. “É uma música em que eu falo que parei com tudo, não quero mais…”
“Canceriano Sem Lar” Raul fez quando estava na clínica Tobias, para tratamento contra o alcoolismo. “Não é traditional blues”, ele emenda. “É uma coletânea de retalhos de rock n’ roll, rhythm..n..blues e gospel. ..Lola.. já traz temas característicos dos anos 50 – letra maliciosa versus música ingênua.”
“Cambalache” – o famoso tango de Henrique Santos Di Cépalo, gravado por, entre outros, Caetano Veloso (em seu álbum branco de 69) – tem uma das misturas mais hilariantes do disco. “Um arranjo louco, superintuitivo, em três ritmos: a bateria fica no tango, o baixo em blues e a guitarra em rock. Todo quebrado”, explica Raul
E, finalmente, a versão em inglês de “Gita”, que ficou “I Am”. “Falar I am ( e não “I..m, como no coloquial) é uma coisa muito forte, uma afirmação mesmo. Canto num inglês shakespeariano e este é um novo arranjo, sem orquestra. Preferi manter a coisa crua, mesmo. E é só”, conclui, abaixando aos poucos o volume do gravador. E tem início a entrevista.
BIZZ – Vamos começar por onde você começou. Logo de cara, você disse que este disco era um presente para os roqueiros de hoje.
Raul – Porque o rock..n..roll nasceu mais ou menos em 54, com cinco influências diferentes: o rock de Chicago – Chuck Berry; do Alabama – Little Richards; os gospels (spirituals) dos negros americanos, e foi se transformando até Elvis Presley fazer o rockabilly. Mas em 59 ele sofreu uma queda – o rock n’ roll mesmo, aquela coisa da dança… enfim, o rock era, na medida que eu conheço, um movimento comportamentista – ter o cabelo assim (Raul mostra uma foto sua, ainda adolescente, de topete e gola alta), cantar desse jeito, de uma maneira tão estranha que as mães tiravam os filhos da primeira fila, pensando que eles estavam tendo ataque de epilepsia. E esses conjuntos de hoje estão fazendo uma coisa muito chegada ao que estão fazendo nos EUA. E lá está uma decadência! Musicalmente, é horrível! Música é música. Música é uma coisa bem-feita, tem ritmo, é gostosa. E o que está acontecendo é que a coisa não está rendendo. Não estão mostrando uma coisa nova. Estão, isso sim, atrasando a música verdadeira. Qualquer pe soa pega no contrabaixo e fica dando uma nota só. Cansei de ver isso, ouvir. Ouço até hoje. Então esse disco vai, assim, como um presente meu, para não deixarem o rock morrer. É um disco só de rock..n..roll. É isso!
BIZZ – Aproveita e fala um pouco da censura. Desta vez, você não teve problemas em colocar o aspecto político, mas, em compensação, teve problemas ao falar de seus comprimidinhos, “que o fazem quase ficar em paz”, como diz a letra de “Check-Up”, censuradíssima.
Raul – Exato, meus comprimidinhos! Sem eles eu não durmo. Mas o caso da censura é o seguinte: eles têm algo comigo, com meu nome, eu não sei… desde a época da Sociedade Alternativa, de Gita… cada hora a censura muda para uma fase: fase que não pode falar de sexo, fase que não pode falar de drogas, fase que não pode falar de política. Agora está aberta para a política. Quer dizer, músicas que o ano passado jamais passariam estão passando agora. Regravei duas delas. Agora estão na fase de drogas. Não sei o que eles estão pensando. Estou esperando que mude o governo, que mude alguma coisa em matéria de censura, para eu poder fazer passar “Check-Up” e “Não Quero Mais Andar na Contra-mão”, pois são duas músicas belíssimas, como um filho para mim… a gente pari e tem de criar. É difícil vê-los vetados assim.
BIZZ – Em 73/76 você começou a freqüentar uma sociedade esotérica e se envolveu com ocultismo etc. Queria que você dissesse como foi aquela fase e o que ficou dela. Você chegou até a ser expulso daquela sociedade…
Raul – Exato. Além de ser expulso da AA (cujas iniciais foram interpretadas no passado como Argentum Astrum), eu fui posto para fora do país. Essa sociedade simpatizou muito com a música “Sociedade Alternativa” e com o trabalho que eu estava fazendo com o Paulo Coelho na época. Era um trabalho no senti- do de fazer uma reestruturação de todos os valores. Isso tudo acarretou em muitos prejuízos para mim. E a reestruturação, essa mudança de valores, não foi completa porque o governo não gostou. A AA me deu um terreno enorme em Minas Gerais para eu construir a Cidade das Estrelas, que era meu sonho na época. Tipo colocar o anti-advogado, o anti-guarda, o anti-tudo… Mutação radical de valores, mesmo. Porque está mudando, só que as pesssoas não querem ver. Até hoje a Sociedade Alternativa fica comigo como uma boa lembrança. Não guardo nenhuma cicatriz psicológica sobre minha saída daqui, que foi braba. Eu pertencia a esta AA, tanto aqui como nos EUA. Fui neófito dessa sociedade. Mas, como eu enrolei um baseado num papiro egípcio, queimei o papiro deles, que era tido como uma coisa sagrada, eles me botaram para fora. E ficou por isso mesmo. Fui expulso e não voltei mais. Cheguei a iniciar onze pessoas nos EUA. Coisa de maluco, mesmo. Cheguei a freqüentar a livraria onde os grandes mestres se escondiam e se encontravam. Eu falava – e falo – fluentemente inglês. Não foi difícil, até aquela besteira que eu fiz e eles não gostaram nada. Tinha de fazer os exercícios que estavam escritos no papiro, e eu não fazia. Também, eu estava muito confuso nos EUA. Tinha sido recém-expulso daqui, estava sem dinheiro, ficava cantando country music nas esquinas para ganhar dinheiro – botava um chapéu de cowboy e metia bronca. E ganhava grana, mesmo. Porque lá eles dão valor. Você cantando direito, junta gente mesmo.
BIZZ – O Sylvio disse que a Sociedade Alternativa nunca começou, nem nunca terminou, que ela sempre existiu. Como assim?
Raul – Ela sempre existiu, desde o tempo do Egito. Inclusive Aleister Crowley, que é o papa maior desta entidade, ele se baseou nos papiros egípcios (não aquele em que eu fumei maconha. Esses deviam ser mais gostosos)… uma coisa de Osíris, Íris e Horus – pai, mãe e filho. E ele descobriu um segredo terrível, lá.
BIZZ – Qual era o segredo?
Raul – Eu não sei, porque eu era neófito. Só na quarta iniciação eles contavam o segredo (risos). Por isso eu disse que nunca começou, nem nunca terminou. Vi que meu ponto de vista não estava muito longe da AA. O que é, é. E sempre será. Não adianta mentir, mistificar.
BIZZ – Agora, conta todos os detalhes de sua expulsão do Brasil, em 74.
Raul – Até hoje não sei realmente qual foi o motivo. Mas veio uma ordem de prisão do I Exército e me detiveram no Aterro do Flamengo. Me levaram para um lugar que eu não sei onde era… tinha uns cinco sujeitos… bom, eu estava… imagine a situação… eu estava nu, com uma carapuça preta que eles me colocaram. E veio de lá mil barbaridades: choque em lugares delicados… tudo para eu poder dizer os nomes das pessoas que faziam parte da Sociedade Alternativa, que, segundo eles, era um movimento revolucionário contra o governo. O que não era. Era uma coisa mais espiritual… eu preferiria dizer que tinha pacto com o demônio a dizer que tinha parte com a revolução. Então foi isso – me levaram, me escoltaram até o aeroporto…
BIZZ – Sem você arrumar as malas?
Raul – Nada, nada. Fiquei apavorado, fui direitinho…
BIZZ – E te largaram lá (nos EUA), sem mais nem menos?
Raul – Sim, mas eu tinha família lá. Eu era casado com uma americana, na época. Sou casado cinco vezes.
BIZZ – Você não consegue ficar descasado, não é?
Raul – Não consigo. Eu gosto de ficar com minha mulher, assistindo videocassete. Fico fazendo minhas bombinhas dentro de casa e jogando para fora e dando risada, vendo co- mo estoura lá fora. Não gosto de me expor. Por isso gosto mais de estúdio que de show. Você expõe muito seu corpo num show. Mas o que foi que você perguntou mesmo?
BIZZ – Você tinha chegado nos EUA…
Raul – É. Primeiro eu fui para a Geórgia. Pegamos as coisas de Glória e colocamos no Cadillac que eu comprei do pai dela. Um Cadillac ano 57, cor-de-rosa, do tempo de Elvis Presley. Atravessamos os EUA inteiros, chegamos até Nova York e fomos morar no Greenwich Village.
BIZZ – Na boca do leão…
Raul – Exato. Ali é brabeza. Não sei como eu não morri. Acho que Deus protege os inocentes..Altas horas da noite e eu por dentro daquelas ruelas, na barra-pesada… e aqueles criolos, de chapéu para baixo… e tem uma história que eu nunca me esqueço. Numa dessas “buscas”, eu fui parar numa rua sem saída. E lá tinha um palhaço – bonito, todo vestido pomposamente – comendo lixo. E ele me ofereceu. Fez um gesto assim com a mão para eu comer lixo com ele. Eu fui. Pelo menos o lixo americano e bem mais saudável, tem uma porção de coisas para você comer. E eu fiz a festa. Eu e o palhaço. Eu não ia desrespeitar o cara. Vai saber quem era – de repente, um paranóico, um maníaco…
BIZZ – E lá nos EUA você encontrou aquele povo todo – John Lennon, Jerry Lee Lewis. Conte como foram esses encontros.
Raul – O John, eu fui até ele com um cara, repórter da revista O Cru- zeiro. E esse cara se atreveu a perguntar sobre a separação de John e Yoko. O John mandou o guarda-costas dele botar o cara para fora. Aí eu disse que não tinha nada a ver com isso, que meu assunto era outro. Ficamos conversando o tempo todo sobre as grandes figuras da humanidade: sobre Jesus Cristo, Einstein, Calígula, Crowley; enfim, figuras que modificaram o rumo da humanidade, basicamente. Aí teve um momento em que ele me perguntou: “E lá no Brasil? Quem tem?” Aí eu fiquei todo nervoso e larguei um Café Filho qualquer. E ele: “Hein?!?!” Eu disse: “Nada, nada. It..s all right… não tem ninguém não”. E ficou por isso mesmo.
BIZZ – O Jerry Lee Lewis foi…
Raul – Em Memphis, Tennessee. Num lugar chamado Bad Bobs, Bobs malvados. Ele chegou com a gangue dele e eu fui logo malhando o rock moderno e ele gostou. Ele estava cheio de Bourbon e até me acompanhou no piano. Eu tinha a gravação até há pouco tempo. Não sei o que houve. Alguém já deve ter levado daqui. E foi legal, o povo americano aplaudiu, mesmo.
BIZZ – Nessas histórias de encontros, teve ainda aquele com Mick Jagger, isso em 68, quando ele esta aqui no Brasil. Na época Jagger lhe disse coisas que mudaram suas idéias. O que foi que ele disse?
Raul – Ele me antecipou os valores morais que estavam vigentes naquela época e que não tinham chegado ao Brasil. Me antecipou o que estava acontecendo musicalmente, culturalmente, em matéria de comportamento… foi interessantíssimo. Fiquei impressionado e me valeu para modificar os meus valores – eu era baiano arraigado, aquelas coisas em que você fica meio pendurado. Primeiro, minha mãe queria que eu fosse presidente. Aí eu disse: “Ah! Mãe, não dá. Presidente da República não dá”. Depois queria que eu fosse diplomata. Eu acabei sendo o que eu sou, mesmo. Me formei em Filosofia para mostrar aos pais da minha primeira mulher – que eram protestantes – como era fácil ser burro. Mas não segui carreira. Utilizei isso depois, nas minhas músicas. Fui mais fundo, bem mais fundo.
BIZZ – Tem esse escrito seu, que eu consegui com o Sylvio, e que eu achei muito interessante: “Duas Palavras Sobre a Revolução Pop”. Quando você escreveu isso? Fale um pouco do que está dito aí.
Raul – Olha! Legal isso” Isso está ligado justamente ao que Mick Jagger conversou comigo. Foi mais ou menos na mesma época. Escrevi para o meu pai, nem sei se ele chegou a ler… a mudança em todos os meios de comunicação. Eu digo isso numa música chamada “A Verdade Sobre a Nostalgia”, do disco Novo Aéon: “Mamãe já ouve Beatles, papai já desbundou. Com meu cabelo grande, eu fiquei contra o que já sou”. Não é isso?! É o seguinte: essa coisa, esse movimento todo, foi por água abaixo, porque o sistema se utilizou disso e os jovens não notaram que estavam comprando roupa hippie; como os punks, hoje em dia, estão comprando roupa punk, estão raspando a cabeça e cantando músicas que o sistema está comercializando. Não é assim que se entra. Tem de entrar em buraco de rato, e rato você tem de transar. Mas transar conscientemente – jogar com dinheiro, com os valores que debitam em você, mas sabendo. Não como esses conjuntos que a Globo faz, que são meteoros e são “sucumbidos”. Eles não têm consciência da estrutura, não têm uma estrutua básica formada, uma visão ideológica, ontológica e metafísica do mundo circundante. Esse é o grande erro, a meu ver.
BIZZ – Falando um pouquinho sobre MPB, o que foi significativo para você na música e na mensagem?
Raul – O Tropicalismo foi importante para a MPB. Deu uma guinada. Você sente quando dá uma guinada. Não adianta você pichar, dizer que não é, porque é. E foi um movimento, consciente, porque os meninos eram inteligentes.
BIZZ – E o Gil está lá na Bahia, como secretário da Cultura. O que você acha disso?
Raul – Não acho legal, não. Porque eu não gosto de política. É a mesma coisa que jogador de futebol querer ser artista, ator de novela querer cantar música. Mistura as bolas. A não ser que ele opte.
BIZZ – Quando você estava na Bahia, em 66, o Jerry Adriani falou para você ir para o Rio que ele ajeitava tudo. Você foi, não deu nada certo, e voltou para a Bahia. Este foi um período meio nebuloso para você. E teve a coisa de todo mundo ficar preocupado, cochichos entre sua mulher e sua mãe. Fale um desse enclausuramento e o resultado disso tudo.
Raul – Eu estava sozinho, no embrião, tecendo minha teia dentro daquele momento que, aparentemente, parecia loucura, que eu não ia mais sair daquilo ali. Que nada! Eu estava preparando a minha bomba. Eu já tinha escrito “Ouro de Tolo” naquela época, na parede. “Metamorfose Ambulante” também estava na parede.
BIZZ – E quando você chegou ao Rio (em 67), não entendeu nada do que estava acontecendo: Agnaldo Timóteo, de um lado; Mutantes, Gil e Caetano, de outro. Como você ficou no meio dessa salada?
Raul – Nós – Raulzito e os Panteras – estávamos fazendo uma coisa intimista, mesmo. Eu não sabia que o disco tinha sido lançado pela gravadora para constar no catálogo. Esses negócios que a fábrica faz, para dar à Inglaterra um número x de lançamentos que eles estão fazendo aqui. O disco não era para ser divulgado, para nada, e eu não sabia. Então, eu trabalhei à toa. A gente saía às 4 horas da manhã, chegava na cidade às 10 para divulgar o disco. E os caras da gravadora, quebravam o disco, cuspiam, pisavam… faziam horrores. E a gente passando fome!
BIZZ – Mesmo você estando ligado ao pessoal em voga na época – Wanderley Cardoso, Roberto Carlos, Wanderléia?
Raul – Nada frutificou. Estava acontecendo o movimento da Jovem Guarda, de um lado, e o Fino da Bossa, do outro. E era uma briga, briga até antiga. Eu me lembro que a gente fazia rock num lugar, lá na Bahia, que se chamava Cinema Roma – era o templo do rock. E no Teatro Vila Velha se apresentavam os intelectuais: Caetano, Gil, Tom Zé, Maria Bethânia, que faziam bossa nova. E eles eram contra guitarra elétrica. Falavam que era entreguismo. E o Tropicalismo acabou com essa diferença. De Elis Regina, de um lado, e Roberto Carlos, do outro. E eu, com o Raulzito e os Panteras, não estava em nenhum desses dois. Enfim, não vingou. Os dois grupos eram muito fortes na época. O meu disco era muito intimista. Falava sobre agnosticismo -, uma música lânguida, e eu cantando com a vozinha fina…
BIZZ – Foi nessa época que você chegou à conclusão de que ainda não era aquilo que você queria dizer à juventude?
Raul – É! Por isso mesmo. Não foi forte como eu fui em 74, abalando mesmo as coisas.
BIZZ – Você ainda continua sendo um dos poucos – ou o único – a fazer a fusão do rock com a música popular brasileira, como o baião. Fale um pouco dessa fusão e suas influências desde o início.
Raul – Eu nasci numa época fértil da música aqui para o Brasil. Tinha bossa nova, cha-cha-cha, Luiz Gonzaga, Trio Los Panchos, Yma Sumac – ela é uma loucura. Voz de violino… eu tenho uma cultura musical muito boa, sabe? E juntei tudo isso. Quando eu soltei, soltei tudo de uma vez. E o rock, porque eu morava ao lado do consulado americano e andava com os americaninhos… era um negócio fabuloso, uma cultura fascinante, e juntei tudo numa coisa só.
BIZZ – E de lá para cá? Tem algum grupo ou compositor que te influenciou?
Raul – Não, não. Eu estou descobrindo coisas até hoje. Descobri Bernie Cass, um cara que toca com Julie London, um guitarrista. É anos 50. Estou descobrindo uma cantora, a Violeta Parra. Descobri esse ritmo e ainda vou fazer uma música com aquele feeling. Apesar de ser difícil aquela batida, difícil pra burro. Estou em cima disso. Ela é demais. Enfim, estou descobrindo coisas. Agora, para dar um ziguezigue mesmo, não tem absolutamente nada que me traga um subsídio qualquer.
BIZZ – Você, Keith Richards, Mick Jagger e mais um ou outro são os únicos quarentões que conseguem manter a força e o espírito do rock..n..roll, de permanecer na mesma estrada. Como é manter essa chama acesa?
Raul – Essa vitalidade parece que nasceu com a gente. É uma coisa fantástica. Quando eu entro no palco me transformo. Não sou essa pessoa que está dando esta entrevista. Entro no palco e estou imbuído daquilo tudo, de meus pensamentos revertidos em música… com a capa do rock..n..roll. E sai assim, de maneira, não sei como definir.
BIZZ – Fale de sua relação com a mídia e os empresários. Das dificuldades que você enfrentou e ainda enfrenta.
Raul – É por isso que eu faço poucos shows. Quando eu estive com o Guilherme Araújo (73/74), fui destacado para ser mais um baiano. Eu era baiano, mas não era dos baianos – Bethânia, Gal, Gil, Caetano. E eles cuidavam dos livros, economicamente falando. E tinha a tia Léa – quero que você cite ela, que toma conta do dinheiro deles. E me passavam para trás. Jogavam tudo que era meu no Imposto de Renda deles. Esse negócio começou a me dar bronca. Tentei empresários inferiores, de nível mais baixo. Aí os lugares em que eu ia tocar também não me contentavam. Meu público é incrível. Em todo lugar eu fazia sucesso. Mas era muita repetição de feira de gado. Eu queria uma coisa maior. Eu levava o público ao delírio, e acho que ainda levo. Mas os empresários me passam para trás porque sou muito ingênuo nessa coisa de dinheiro. Eu queria achar um empresário bom, que correspondesse com minha parte artística. Se eles fossem legais comigo, eu também seria com eles. Muitas vezes eu fazia arbitrariedades porque eu sabia que não ia receber. (Raul se levanta e paga seu álbum de fotos e reportagens. Passa a relembrar alguns momentos interessantes, por exemplo a participação dele no Festival Internacional da Canção em 72.) Eu ia tirar a segunda colocação neste Festival. E os federais estavam atrás do palco…
BIZZ – Conta como foi essa história direito.
Raul – Foi quando eu levei o “Let Me Sing My Rock..n..Roll”, o pessoal federal estava todo por trás da coxia, dando toque de que se eu ganhasse estava frito. Nunca tinha visto isso. Fiquei apavorado! Eu não podia ganhar! Isso porque o júri, segundo eles, era anarquista – Rogério Duprat, Guilherme Araújo, Nelsinho Motta, só a rapeja. Peguei o terceiro lugar. (Em outra foto, com Sílvio Santos, Raul se detém e fala do dia em que ele parou o programa do Sílvio.) Parei para mostrar a minha capa. Você sabe, ele é o artista do programa. E ele ficou todo sem jeito, e aí eu comecei a conversar com o auditório dele. Tomei dele. E aí ele quis sair a murro atrás da cena comigo. Nunca mais fui ao programa dele.
BIZZ – Fale um pouco da sua parceria com Paulo Coelho.
Raul – Eu digo que tinha uma briga cultural com ele, para ver quem ganhava. Eu era o melhor amigo do inimigo, e vice-versa. Com o passar dos anos, houve um desgaste. Mas sempre foi uma boa parceria, com afinco, e saíram obras lindíssimas, como “Canto Para Minha Morte”, “Ave Maria da Rua”, “Meu Amigo Pedro”, “Tente Outra Vez”. Tenho muita vontade de gravar um LP só com essas músicas lindas, tipo aquelas que não tocam no rádio, o outro lado do disco…
BIZZ – E o que você pretende fazer com todas essas raridades que você tem aqui?
Raul – Essa fita, por exemplo, é uma raridade mesmo. Raul também é documento! Trata-se de eu esculhambando com Roberto Menescal e André Midani no estúdio. Eles queriam que eu gravasse um sucesso. E eles tinham me malhado primeiro, malharam mesmo. Depois de Gita, eu fiz o LP Novo Aéon, que é o disco de que eu mais gosto. E este vendeu menos que Gita. E, aqui no Brasil, você tem que matar um leão por dia. Se não matar, você está frito, já perdeu, E aí, veio aquela história: “Raul Seixas perdeu a cabeça”, e coisas do tipo. E eu tinha o tal sucesso “Eu Nasci Há Dez Mil Anos Atrás”, e fui naquele dia para gravar. Aproveitei esculhambei. Não gravei nada. Tem a fita aí do que saiu. E eu bêbado que nem o diabo, falando para eles: “Isso vai ser levado para história. Pode deixar, quando Raul morrer vai fazer sucesso. Pelo menos vocês têm essa fita”. E não gravei a “Dez MiL..”. Deixei para o outro dia. E eles ficaram preocu- padíssimos.
BIZZ – Como é Raul Seixas entrando no atual cenárico com esse disco?
Raul – Todo disco que eu faço é diferente um do outro. E esse eu acho que vai causar um rebuliço danado. Boto muita fé nele, em todos os sentidos – tanto como letra, como continuidade de um trabalho. Não de pregação, mas de um trabalho raulseixista. Ele é minha cara.
BIZZ – E os shows de agora? Lançamento do LP…
Raul – Não sei, não sei não. Eu vou fazer o videoclip. Já tenho idéias até demais. Vai ter que cortar.
BIZZ – E a história de lançar o disco lá fora?
Raul – Vou tentar lançar “Gita” em inglês, que ficou “I Am”. Está indo para o Midem, que é o mercado internacional de não sei o quê. É um intercâmbio. O Adiel, que tem uma cancha danada, está superentusiasmado e nós também. Ele vai levar e tentar lançar a música lá.
BIZZ – Quem toca no disco?
Raul – Rick, na guitarra, piano, violão de 12 cordas e banjo. Ele é o homem dos sete instrumentos. Ah! toca slide guitar, também. O Pedrão começou no baixo, depois entrou Geraldinho e, finalmente, o Nenê (ex-Incríveis). Tem o Antenor, na guitarra, que toca jazz pra burro. Ele destrói a guitarra. E, na bateria, começou com Albino e, depois, Chicão.
BIZZ – No show, você estará com eles?
Raul – Eu quero. Já convidei o Rick. Ele toca com o Erasmo.
BIZZ – Você não ia atacar de produtor novamente? Ouvi dizer que você queria produzir o novo disco da Wanderléia…
Raul – É… Vou produzir um disco dela sim… um disco bem roqueiro mesmo… Botaram ela num caminho que não era o dela… coisa de produtor, que não é compositor. E o artista, quando não tem muita noção do próprio trabalho, se deixa levar pelo produtor e o produtor leva para o caminho dele…
BIZZ – E, fora isso, você está pensando em alguma outra coisa?
Raul – Estou com um cara aí para lançar. Um cara chamado Arthur, que eu conheci na clínica Tobias. Canta para c*…, 22 anos, loirinho. Vou levar para a Copacabana.
BIZZ – E eles já toparam?
Raul – Já. Lá eu tenho carta branca.
BIZZ – Você ia lançar um disco que se chamaria Persona. Por que você mudou de idéia e como seria esse disco?
Raul – Eu queria fazer um som baseado nas máscaras gregas. Ia ser outro disco pesado, daqueles fatídicos. E, sei lá, estou numa fase bem leve, preferi fazer esse disco para o pessoal dar prosseguimento à coisa genuína e pura que já é. Sem muitos sintetizadores. Eu ia fazer uma música chamada “Decálogo”, sobre os direitos humanos, música baseada estritamente em filosofia existencialista, pessimista, agnóstica, metafísica, mesmo. Mas sabe quando você pendura tudo na parede e sente que não é aquilo, não é momento? Aí optei pela música mesmo.
BIZZ – Quais as coisas que leu e que foram realmente significativas para você?
Raul – Tudo que eu estudei. Estudei latim só para ler Metamorfose, de Ovídio. Me formei em Filosofia, Inglês arcaico, estudei muito Psicologia, fui a fundo mesmo, mas não levei adiante. Estudei Direito… mais filosofia mesmo, fui até além do que devia. E Literatura, também, muito… e chega, né?
BIZZ – Já que você falou que gosta muito de Ontologia, nunca aconteceu de você travar aquelas fatídicas discussões…
Raul – Ih! Varava a noite falando disso. Mil citações, um querendo pegar o outro na dialética, né?
BIZZ – Uma verborragia infinita!
Raul – Mas eu acabava com isso num instante. Quando me cansava, eu dizia: “Estamos aqui, dois seres humanos, discutindo há horas, e não chegamos a nenhuma verdade absoluta, porque não existe verdade absoluta, porque não existe verdade absoluta. E quer saber de uma coisa? Você não existe”. (Risos gerais.)
Um fã-clube atípico
Um dos fãs-clubes de Raul Seixas, o encabeçado por Sylvio Passos é o que se poderia chamar de anti-fã-clube. Ou, melhor ainda, aquele que faz tudo que um fã-clube normalmente não faz. Sylvio foi responsável, por exemplo, pelo lançamento de um dos discos mais raros – e procurado a peso de ouro, hoje em dia – de Raul. É um coletânea do que ele considerou as maiores pérolas do autor, com gravações inéditas, intitulado Let Me Sing My Rock..n..Roll. Além disso (e apesar de não ter ganho um só tostão com esse disco), Sylvio se prepara para lançar, logo após ou simultaneamente ao LP de Raul, uma antologia poética do artista que levará o nome de A Metamorfose Ambulante. Alô, editores, vale a pena ver o materia, riquíssimo!
Para chegar até Raul, Sylvio colocou um anúncio no jornal. Um belo dia, o então empresário de Raul armou um encontro. “Quando ouvi Raul pela primeira vez, pensei: ..Esse cara deve ser muito louco. Preciso conhecê-lo… Quando nos encontramos, olhamos um para o outro e era como se nos conhecêssemos há anos. E não nos desgrudamos mais”, conta Sylvio. “Ele é um grande amigo meu”, disse Raul em um dos vários telefonemas para acertarmos a entrevista.
A amizade é tão forte que Raul deixou aos cuidados de Sylvio escritos e mais escritos pessoais, fitas e mais fitas raras – além das que o próprio Sylvio gravou ou conseguiu -, fora a infinidade de reportagens e toda a discografia completa do artista. Conhecendo o Raul e Sylvio, dá para perceber que o artista ganhou um admirador à sua altura.
Ao contrário de Raul, Sylvio não curte apenas o rock dos anos 50. Além dos pais do estilo, ele gosta – e muito – dos Doors, Lou Reed, jazz, jazz-rock e blues, e declara que o Smack é a melhor banda de rock daqui. Este é o perfil do garoto de 23 anos que está no comando de um dos poucos fãs-clubes dignos de nota no Brasil. Quem tiver interesse, basta escrever para a Caixa Postal 12106, agência Santana, CEP 02098, SP. E, como diz o carimbo que Sylvio sempre coloca em suas correspondências: PARE, PENSE, ENTENDA.
Sônia Maia – Revista BIZZ – Março 1987
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