sexta-feira, 24 de janeiro de 2014
Como se constrói um "espírito" através de estereótipos
A vergonhosa atitude do "médium" Nelson Moraes de "reinventar" Raul Seixas através da figura caricata e idiotizada de Zílio mostra como se constrói a imagem mitológica de supostos espíritos, através de estereótipos colhidos de uma imagem já distorcida em vida.
O suposto Zílio, que expressa posturas místico-religiosas de forma exagerada e um tanto abobalhada, contradizendo com o cínico Raul Seixas que havia deixado o misticismo de lado na década de 80, foi construído a partir de uma visão conservadora concebida por um Raul Seixas massificado e deturpado pela visão midiática mais conservadora.
Com o estrondoso sucesso do roqueiro baiano, a partir de 1973, dentro de uma fase mística influenciada pelo psicodelismo dos anos 60, sobretudo da parte do ex-beatle George Harrison, Raul aparentemente dissimulou sua rebeldia cínica e desconfiada para, ao lado do escritor Paulo Coelho, seu principal letrista, produzir canções dentro dessa perspectiva esotérica.
Aí vieram músicas como "Gita", "Sociedade Alternativa", "Tente Outra Vez", "Trem das Sete", algumas nem tão místicas assim, mas dentro de uma temática que agrade consumidores de perfil mais conservador, e que momentaneamente haviam aceito Raul Seixas naquela fase transitória de crenças sobrenaturais, sobretudo influenciadas pelo parceiro e hoje escritor de sucesso.
É útil notar que Nelson Moraes, uma figura que sugere um idoso conservador, pouco receptivo à verdadeira pessoa de Raul Seixas, tenha construído o mito do cantor baiano através de referências colhidas sobretudo da Rede Globo e das revistas Amiga e Contigo, fontes que os leigos usaram para "conhecer" o perfil de Raulzito.
Estas fontes não necessariamente captaram a essência real de Raul, que tinha uma personalidade muito difícil, era bastante desconfiado das coisas, rompeu com Elvis Presley depois que este prestou o serviço militar e dizia que o rock morreu após o trágico acidente com Buddy Holly, Big Bopper e Richie Valens em 1959, e estava cético quanto à redemocratização do Brasil.
Pelo contrário, a mídia captou uma imagem distorcida de Raul vestido de mágico, com olhar arregalado de "maluco beleza" - as pessoas ignoram que a canção "Maluco Beleza" possui uma letra bem irônica, Raul sabia ser bem corrosivo no seu humor - , cantando "Plunct, Plact, Zum" para a criançada, falando de Astrologia etc.
Ninguém percebe, por exemplo, que "Plunct, Plact, Zum" é tão somente um refrão de uma música chamada "Carimbador Maluco", e cuja letra, longe de ser debilmente infantil, era uma crítica severa à burocratização, um dos problemas políticos enfrentados naquele 1983 do período final da ditadura militar.
Raul sempre foi irônico. Aquele olhar "largado" dele, na verdade, expressa uma certa desconfiança com a sociedade, bem longe do perfil idiotizado de Zílio. Só mesmo sendo roqueiro no Brasil para entender a fundo quem realmente foi Raul Seixas, que já em 1980 já estava despido de todo aquele misticismo que os leitores incautos viam acentuado nas mensagens piegas de Zílio.
O roqueiro baiano encerrou sua vida amargurado. Via o cenário político do país com pessimismo, ante a banalização da corrupção. Encarava o cenário musical brasileiro como algo decadente, vide seus ataques a "sertanejos" e axezeiros e mesmo cutucadas ao Rock Brasil, como se vê em letras como "Muita Estrela, Pouca Constelação" e "Rock'n'Roll", ambas feitas com Marcelo Nova.
O próprio Marcelo, ex-cantor do Camisa de Vênus, era amigo de longa data de Raul e afirma que ele nada tinha a ver com esse perfil "bonzinho" que a mídia tanto explorou a respeito dele. Nova era enfático nessas afirmações quando falava, em rede nacional, como apresentador do programa "Let's Rock", da Transamérica FM.
Certa vez, Marcelo Nova, num comentário irônico, chegou mesmo a dizer que Raul Seixas "está no inferno", ao lado dos grandes nomes do rock, como uma forma de se contrapôr à imagem piegas que muitos têm do "paraíso celestial". Nova é um dos poucos a entender o perfil rebelde de Raul e conviveu com ele nos últimos momentos de vida.
Raul não se converteu num ingênuo querubim a falar docilmente para a criançada que a "sociedade alternativa" é outra no mundo espiritual e que ainda fala em ideias místicas e sobrenaturais para pregar a esperança em outras vidas.
Raul nem sequer iria parafrasear textos ou títulos de suas canções, porque não é de sua personalidade. Raul olhava para a frente, ele não iria usar a frase "tente outra vez" para falar em novas encarnações, se realmente tivesse se manifesto em mensagens psicografadas.
Portanto, Zílio não passa de uma fraude, uma vez que Raul Seixas, deixando o corpo físico, no entanto não deixaria de ser ele mesmo. Raul continua tão cético e questionador quanto era até 1989. E sem qualquer sombra de misticismo.
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