PARECE APARIÇÃO ESPIRITUAL DE RENATO RUSSO (DE ÓCULOS), MAS ELE ESTAVA VIVO E ATIVO NA ÉPOCA DESTE DISCO DA LEGIÃO URBANA, QUE PAÍS É ESTE? 1978-1987.
Não bastasse a luta que dois dos três remanescentes do grupo de rock Legião Urbana, Dado Villa-Lobos e Marcelo Bonfá, para serem responsáveis pela marca e pelo espólio deixado pela extinta banda, os aproveitadores do Espiritolicismo também embarcam na carona do prestígio do finado vocalista Renato Russo.
O suposto médium Wilton Oliver, através do portal Luz Espírita, divulgou duas supostas mensagens do espírito Renato Russo, que teriam sido recebidas em 13 de junho de 2011, que destoam da personalidade do cantor, mesmo nos seus momentos mais sentimentais.
"O suposto Espírito disse em um momento estar perturbado pelo passado, falou-nos do seu despertar no plano espiritual, em perturbação de inicio, por conflitos íntimos e lembranças de dissabores colhidos na pele do famoso cantor e compositor", promete o texto publicado no portal, entendendo por "suposto" não da forma contestatória que adotamos.
As duas mensagens foram publicadas em forma de poemas, e embora sejam carregadas de lirismo, melancolia e uma certa coloquialidade, elas pouco têm do estilo poético conhecido pelo autor de letras conhecidas como "Faroeste Caboclo", "Será", "Tempo Perdido" e "Que País é Este?".
Uma delas estranhamente é uma letra de música, "Menos Ateu", numa postura bastante estranha de Renato Russo porque, independente dele ter sido religioso ou não - ele se inspirou, por exemplo, na carta de São Paulo aos Coríntios para compor alguns versos de "Monte Castelo" - , nunca iria fazer uma letra apelando para outros deixarem de ser ateus.
Aqui estão as duas letras. Uma é uma mensagem intitulada "Hoje Mais Que Ontem", outra a letra da suposta canção.
HOJE MAIS QUE ONTEM
Bom olhar o sol nascer
além das montanhas
e afastar a sombra pra lá de mim.
Bom ver o mar e o céu azul
num rosto amigo ver Jesus.
Bom saber que o amor está aqui.
Quantos segredos guardei
e poucas vezes perdoei.
Quantos erros esqueci de perdoar.
Eu poderia lamentar,
mas prefiro tentar outra vez.
Tudo se renova em espírito e verdade,
mais justiça,
enfim, mais amor em mim.
Vejo mais fraternidade,
não estamos sós,
na beleza do infinito eu estou aqui.
Acredite em mim,
simplesmente vivo.
Só a verdade me liberta.
Eu tenho sede,
eu tenho pressa,
eu acredito na promessa,
acredito nas palavras de amor e fé,
meu coração guarda as tuas palavras.
Não existe perigo,
tu estás comigo
e com meus irmãos.
MENOS ATEU
Eu só desejo a você o que for necessário
É o que desejo a você.
A primeira vez era só incompreensão
A gente não sabia, mas alguém falou da lei de amor
E nos mostrou então a salvação é caridade
E desde então escolhemos a verdade.
Olha, o sol já vem, já vem, já vem
Vem, vem somar o sorriso teu
Do primogênito ao derradeiro,
Somos todos filhos de Deus - Refrão
Eu só desejo a você o que for necessário
É o que desejo a você
Que a paciência que te falta hoje,
amanhã você possa ter
Que você possa plantar a felicidade
E você saiba doar tudo aquilo que se tem
Que você faça somente o bem
Olha, o sol já vem, outra vez já vem
Vamos brincar no quintal de Deus
Vamos ser mais honestos
Vamos ser menos ateus.
O que nasce do amor só pode ter bondade
Não acredito na imperfeição
Não acredito na maldade
Eu sei, temos nosso ninho
Mas, se vamos brincar no quintal de Deus
Vamos ser mais honestos
Vamos ser menos ateus.
"TIRAM TODAS AS MINHAS ARMAS. COMO POSSO ME DEFENDER?"
O subtítulo acima, extraído da letra de "O Reggae", gravada pela Legião Urbana em 1984, ilustra bem o caso de usurpar os espíritos falecidos para produzir pregações religiosas que tentam prevalecer até mesmo sobre a luz de qualquer desmascaramento, como se a caridade pudesse estar acima da ética.
Se na vida material o filho de Renato Russo, Giuliano Manfredini, com toda a afeição sincera que tem pelo pai, comete irregularidades nas homenagens feitas ao cantor, escalando até o arroz-de-festa Ivete Sangalo (que adora pegar carona em qualquer coisa para obter visibilidade), imagine os supostos representantes da espiritualidade do além?
O Espiritolicismo usou Renato Russo, nestas duas mensagens, para fazer proselitismo religioso, seja em "Hoje Mais Que Ontem", de claro teor panfletário, que investe nos clichês de "amor e fé", "fraternidade" e "amor próprio" que, em termos de expressão da personalidade de Renato Russo, soa bastante oca, vazia e improcedente.
Em outras palavras, "Hoje Mais Que Ontem" poderia ser feito por qualquer um, até por um compositor brega da espécie de um José Augusto, tão carregada de pieguice. Só não seria feita pelo próprio Renato Russo, que, mesmo na sua emotividade mais carregada, nunca escreveria um texto desses que nada diz a respeito de sua personalidade e estilo.
Mais grave ainda é o caso de "Menos Ateu", um título cuja expressão "ateu" remete, no sentido estrutural, não a uma música da Legião Urbana, mas a do Finis Africae ("Deus Ateu"), outro grupo de rock brasiliense, e cuja letra, além de evocar o mesmo panfletarismo religioso da outra mensagem, pede para que sejamos "menos ateus", algo que Renato Russo nunca iria pedir.
Ele respeitaria o ateísmo de outras pessoas. Nos últimos anos de vida, Renato Russo estava até cético, pouco inclinado a mergulhar numa viagem "místico-religiosa" que Wilton Oliver divulgou nas mensagens supostamente atribuídas ao cantor.
Tudo indica que os textos teriam sido escritos pelo próprio Oliver, que botou na "conta" de Renato Russo porque ele não está aí para se defender, e apenas "Menos Ateu" parece uma imitação "mais cuidada" da poética do cantor, sobretudo no verso "vamos brincar no quintal de Deus", mas isso em nada contribui para dar autenticidade à presumida autoria.
Pelo contrário. A imitação tem desses detalhes. Às vezes ela imita com perfeição alguns aspectos, embora seu caráter de fraude sempre apareça em outros aspectos mal imitados, já que a interferência de outra pessoa se passando por um artista ou mensageiro não substitui o trabalho original.
Toda falsificação tem por fim se passar por verdadeira. Mas ela, na sua intenção de copiar as caraterísticas da fonte original, só consegue acertar parcialmente na reprodução de seus elementos. Só que, como não se trata do próprio autor original, ela sempre falha em outros aspectos, e a fraude sempre aparece, mesmo nas mais habilidosas sutilezas.
No caso de Renato Russo, nem deu para convencer muito. Um poema oco, "Hoje Mais Que Ontem", que nada diz da personalidade do cantor, e outro, "Menos Ateu", que até tenta imitar o estilo de Renato, mas investe em um apelo que o falecido vocalista da Legião Urbana não faria, porque Renato respeitaria os ateus.
Portanto, para aqueles que não conhecem o Espiritismo e embarcam numa cilada dessas, no primeiro momento de desconfiança serão capazes de perguntar: "Que Pátria Espiritual é esta?", horrorizados com o panfletarismo religioso e com as mensagens toscas atribuídas aos falecidos, mensagens que têm mais pregação religiosa do que qualquer traço de personalidade dos autores a elas atribuídos.
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