A FUNQUEIRA VALESCA POPOZUDA E O CLIPE DE SEU SUCESSO "BEIJINHO NO OMBRO".
Que trilha sonora oficial terá o "Coração do Mundo", o Brasil estereotipado e embalado por autoridades, dirigentes, tecnocratas, empresários e políticos? Como havíamos escrito, embora musicalmente o Espiritolicismo tende a defender uma erudição artística rigorosa, seu caminho ideológico acaba tendo um outro rumo.
A julgar pelo filme Nosso Lar, essa trilha sonora seria a música erudita, orquestral, como reza a obra, de 1943, e o enredo, ocorrido alguns anos antes. Era o contexto dos anos 1930, mas tudo indica que era a música clássica já na sua forma "ligeira" - como se denominavam as pequenas peças eruditas veiculadas no rádio da época - e feita mais como analgésico da alma do que como expressão cultural.
Mas era o contexto da época. Só que, se julgarmos os descaminhos da espiritualidade em geral, independente de chiquismos, divaldismos ou mesmo de qualquer postura religiosa, espiritólica ou não, sabemos que a trilha sonora do tal "Coração do Mundo" do "anjo" Ismael não é outra coisa senão o "funk".
Isso pode ser controverso, até porque a maior parte dos espiritólicos vê no "funk" um reduto dos mais baixos instintos morais, onde os excessos materialistas mais baixos acontecem, respaldados pela apologia à violência e ao sensualismo mais brutal. Mas o "espiritismo" brasileiro, contraditoriamente, estabelece condições espirituais para que o "funk" prevaleça.
Além disso, é muito forte o discurso dos defensores do "funk" de que o ritmo não estaria associado a esses baixos instintos. Hoje alguns ídolos funqueiros, como Mr. Catra e Valesca Popozuda, também são trabalhados numa imagem "tão positiva" quanto os ídolos do "espiritismo" brasileiro, inclusive evocando valores da Família e a mesma simpatia gentil que se vê nos "centros espíritas".
O lobby fortíssimo que o "funk" tem entre intelectuais, acadêmicos e ativistas sociais, junto à sofisticada blindagem da grande mídia e do mercado, também tenta promover uma "boa imagem" dos funqueiros, usando o mesmo discurso pseudo-vanguardista que vemos em obras como Brasil, Coração do Mundo, Pátria do Evangelho.
A julgar pela pregação midiática, as "boas famílias" consomem tanto Chico Xavier quanto Valesca Popozuda, apreciando a imagem agradável trabalhada pelos meios de comunicação. Valores sociais "positivos", defesa da "cidadania", apologia à alegria e à cordialidade, entre tantos outros valores "bons", tudo isso é trabalhado também no discurso funqueiro.
Nos grandes condomínios, há até mesmo casos das mesmas famílias que fazem seus "cultos ao Evangelho no lar" promoverem festas infanto-juvenis nos quais sempre há um momento em que vários sucessos do "funk", inclusive "Beijinho no Ombro", são tocados. Tudo dentro de um lazer "sadio", como "sadia" é a apreciação dos valores espiritólicos acreditados por essas pessoas.
POR QUE O "FUNK" TORNOU-SE HEGEMÔNICO?
Sob a ótica da espiritualidade, perguntamos por que o "funk", com todos os seus valores duvidosos de exaltação da pobreza, da mediocridade e da ignorância "populares", tornou-se tão hegemônico a ponto de chegar aos redutos da alta sociedade.
Pensando com mais atenção, sabe-se que o próprio caráter retrógrado do Espiritolicismo, o suposto "espiritismo" que se anunciava como a "vanguarda da espiritualidade brasileira", em nada contribuiu para romper com antigos paradigmas religiosos, e, não obstante, até os reforçava por trás de sua retórica falsamente avançada.
A roustanguista Federação "Espírita" Brasileira defendeu cenários políticos que agravaram a miséria, a ignorância, a imoralidade, a violência e outros problemas de ordem social diversa. Enquanto pregava não a mobilização contra as injustiças, mas a simples oração e o semi-ativismo do assistencialismo religioso mais paternalista, a FEB contribuiu mais para o retrocesso do que para o progresso.
Seu assistencialismo foi insuficiente para transformar a sociedade, porque se baseava apenas em medidas passivas e paternalistas, como conceder cestas básicas a populações carentes. Dava-se os peixes, mas não se ensinava a pescar.
Além disso, a recomendação estrita de "autoconhecimento" e "reforma íntima", eufemismos para o conformismo psicológico - em outras palavras, a ideia de alguém ter que aceitar o mundo como está e aguentar qualquer problema ou injustiça - , impedem que seja feita alguma mobilização ampla que pudesse interferir nos problemas do país de maneira segura, ativa e drástica.
Esse conformismo travestido de "reforma íntima" e "autoconhecimento", dentro de um contexto de pretensa "vanguarda espiritualista", só fez agravar as coisas. Pois aqueles que prometiam grandes mudanças no estado de espírito da humanidade eram os primeiros a rejeitar qualquer luta por mudanças reais, que trouxessem benefícios reais e definitivos para as pessoas.
E quais foram as consequências? As injustiças permaneceram, e até se adaptaram às mudanças de contexto. Até mesmo a corrupção e a violência se respaldam em desculpas moralistas. O instinto humano, mesmo reprimido pelo discurso da "reforma íntima", praticamente multiplica seu apetite de cometer abusos, injustiças, irregularidades, e até mesmo o prejuízo aos próximos.
E com tudo isso, o "funk" surge como aquele sub-produto "incômodo", mas próprio desse quadro de descasos, irregularidades e omissões. A FEB, omissa na missão de promover mudanças no cenário espiritual do Brasil, recusando-se a cumprir suas promessas de pretensa vanguarda moral, desmobilizou os espíritas desviados das lições originais de Allan Kardec.
Tomados de valores católicos retrógrados, de uma perspectiva materialista da espiritualidade, com seus ritos e dogmas, e dominados por um misticismo e moralismo religioso que os faz mais temerosos e mais conformistas, os ditos "espíritas" brasileiros deixam de exercer a vanguarda espiritualista prometida, não fazendo o que pareciam estarem prontos a fazer.
E aí os valores morais, culturais e sociais caem, enquanto o poderio midiático, político e econômico, que num momento ou em outro contou com o apoio da FEB, fazem com que as classes populares, entregues a valores confusos difundidos pelas rádios e TVs, sejam induzidas a produzir um engodo sonoro e comportamental que consiste hoje no "funk", seja "funk carioca" ou "funk ostentação".
Os espiritólicos não podem reclamar. Eles se anunciavam como uma vanguarda espiritualista que poderia ter adaptado os ensinamentos científicos de Kardec, um dedicado pedagogo francês preocupado com a educação popular. Em vez disso, esses ditos "espíritas" permitiram que o país se desgradasse, chegando mesmo a adotarem posturas conservadoras que imobilizaram o país.
Daí, por exemplo, Chico Xavier defendendo a ditadura militar. Daí as fraudes nas psicografias e psicopictografias. Verdadeiros quadros falsificados, de uma falsificação até mesmo grotesca e inverossímil, pintados e vendidos sob o verniz da "caridade". Daí as pregações moralistas, daí os misticismos delirantes, daí os livros "espíritas" de valor bastante duvidoso.
E aí o Brasil, o pretenso "coração do mundo", a suposta nação-guia da espiritualidade, só poderia ter como trilha sonora oficial o "funk", também anunciado como suposta vanguarda cultural por acadêmicos e jornalistas influentes. Se os espiritólicos parecem não aprovar os funqueiros, no entanto terão que admitir que uns e outros adotam o mesmo discurso.
É a mesma retórica das "boas ideias", a "espiritualidade fraternal" de uns e a "expressão das periferias" de outros. A pregação de "amor e caridade" de uns e a "alegria e liberdade" de outros. A tolerância, em ambos os casos, como um pretexto para aceitarmos seus abusos e erros. A cidadania, nos dois casos, como desculpa para legitimar suas manifestações mais baixas.
Por isso, para um Brasil que não conseguiu exercer a vanguarda da espiritualidade, o "funk" aparece travestido de "vanguarda cultural", através de monografias e documentários cinematográficos que, na sua astúcia ideológica, atraem tanta gente quanto os livros "espíritas" e os filmes do gênero. Em ambos os casos, a desculpa das "boas energias" seduz muita gente. Infelizmente.
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