domingo, 23 de agosto de 2015

No Rio de Janeiro, o 'apartheid' social vem de BRT

DECISÃO DO SUBSECRETÁRIO ALEXANDRE SANSÃO (E) O FAZ SER COMPARADO A EDUARDO CUNHA NO ÂMBITO DA MOBILIDADE URBANA.

Um dos mais perversos processos de exclusão social está em curso no Rio de Janeiro, cidade que vive um surto de provincianismo e ultraconservadorismo social, uma situação preocupante se levermos em conta que a cidade e seu respectivo Estado servem de referência para a prevalência de valores e práticas adotados no resto do Brasil.

A eliminação de linhas de ônibus na outrora Cidade Maravilhosa, marcada pela corrupção política, pela criminalidade crescente, pelos movimentos reacionários, pelo vandalismo na Internet e por tantos outros retrocessos sócio-culturais, já prejudica o direito de ir e vir das pessoas e pode complicar ainda mais em outubro, quando a Zona Sul perderá nada menos que 33 linhas de ônibus.

Elas serão substituídas por linhas "troncais", um total de cinco, algumas em direção ao Centro, outras em direção à região da Barra da Tijuca e Recreio dos Bandeirantes. Tudo parece simples na teoria, feita por critérios puramente tecnocráticos, dentro de simulações da computação gráfica e de outros aplicativos digitais.

No entanto, a realidade não é bem assim como acontece e o que haverá é a eliminação de importantes linhas de ônibus, de grande demanda e muitos carros, por trajetos troncais feitos apenas com poucos BRTs. Na teoria, tudo parece permitir que o trânsito fluirá com menos ônibus e as linhas serão adequadamente substituídas por BRTs. Mas na prática um quadro estarrecedor está por vir.

Como se observou nos casos do Fundão, Madureira e Alvorada, a extinção de trajetos tradicionais, alguns deles exclusivos e funcionais, como 465 Cascadura / Gávea, 676 Méier / Penha, 910 Bananal / Madureira e 952 Penha / Praça Seca em "alimentadoras" que só reproduzem parcialmente os respectivos itinerários, os BRTs, insuficientes para cobrir a ampla redução de ônibus em circulação, se tornaram superlotados.

A superlotação é tanta que o ar condicionado não consegue refrescar os ônibus que, com janelas lacradas, sem abertura, se tornam locais quase asfixiantes, com tantas gentes espremidas. O anedotário popular já compara os BRTs às "latas de sardinha", porque eles podem ser considerados "enormes" para o padrão dos ônibus (embora nem tanto, já que um BRT soma a estrutura de um ônibus convencional com um ou dois micrões), mas são muito pequenos para o padrão dos trens.

O que se teme é que, no caso da Zona Sul, a coisa piore ainda mais com a redução das linhas. E seu autor, o subsecretário de Planejamento da Prefeitura do Rio de Janeiro, Alexandre Sansão, que havia sido secretário de Transportes da gestão de Eduardo Paes, já está sendo comparado a um equivalente à mobilidade urbana do presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha, famoso pelo seu autoritarismo.

Sansão é responsável por medidas antipopulares como a pintura padronizada nas empresas de ônibus, que demonstrou confundir os passageiros, que precisam redobrar a atenção, e estimular a corrupção político-empresarial, e a dupla função do motorista-cobrador, que sobrecarrega o trabalho do motorista, que está sujeito a acidentes e outros incidentes, o mais trágico envolvendo um ônibus da Paranapuan que caiu de um viaduto em Bonsucesso, matando oito passageiros, devido a uma briga por troco de passagem entre um usuário e o motorista, que sobreviveram.

Aliás, o próprio PMDB age de maneira autoritária e o prefeito Eduardo Paes governa a cidade do Rio de Janeiro como se fosse um síndico de um condomínio de luxo. Ele parece se focar mas os turistas de Barcelona, embora tente parecer "progressista" e tentar se passar por "super-prefeito", capaz de atender os mais diversos âmbitos do interesse público. Mas falar é fácil e agir é que é o problema. E o PMDB carioca age contra os interesses populares.

No caso das linhas da Zona Sul, a mudança é um dissimulado projeto de gradual higienização social, dificultando às populações suburbanas o acesso às praias litorâneas. As autoridades tentarão desmentir, como é de praxe, mas a prática fala muito mais do que mil discursos.

TRADICIONAL LINHA 474 SERÁ UMA DAS EXTINTAS E DARÁ LUGAR A UM TRAJETO QUE LIGARÁ O JACAREZINHO AO CENTRO.

APOIO ELITISTA

Reportagem publicada pelo jornal Extra do último dia 20 mostra que o projeto de reformulação de linhas para a Zona Sul só é defendido pelas elites. Enquanto os trabalhadores protestam e lamentam terem que fazer baldeação, entidades patronais, políticos, tecnocratas e associações de moradores ricos elogiam a medida e compartilham dos mesmos argumentos fantasiosos.

"A maioria dos passageiros nem vai precisar fazer transbordo. Na Zona Sul, os ônibus deveriam andar com 80% da capacidade no horário de pico, mas não passam de 50%. Também não creio que teremos desemprego", delira o próprio Alexandre Sansão, ignorando a própria realidade de que muito mais passageiros terão que fazer transbordo, como se já não bastasse o pessoal que já vem de zonas distantes da Zona Norte e Zona Oeste.

Com essa declaração, ele também ignora que postos de trabalho serão, sim, fechados com a medida, e que o único benefício será que mais ônibus serão vendidos praticamente para serem repassados somente para os lucros das empresas. Levantamento aponta que o Rio de Janeiro tornou-se a nova capital brasileira do desemprego, com mais de 45.300 vagas fechadas, só no trabalho formal.

"Há ônibus demais. Alguns vão para onde já existe metrô e devem ser suprimidos" tenta argumentar a presidente da Associação de Moradores de Ipanema, Maria Amélia Loureiro, provavelmente escondendo o incômodo que os abastados moradores dos edifícios da Zona Sul têm de que os "ônibus demais" vêm de lugares distantes como Méier, Abolição, Cordovil, Olaria, Jacaré, Cidade de Deus, Rio das Pedras e Usina.

"Pouquíssimos passageiros faziam a viagem completa. Essa lógica continuou até hoje", alega o professor da COPPE/UFRJ, Paulo Cezar Martins Ribeiro, adotando uma visão de mobilidade urbana de tecnocratas isolados em seus gabinetes. Além disso, o Rio Ônibus, sindicato patronal, ligado aos empresários de ônibus, afirmou que o sistema irá "melhorar" com a reformulação. Melhorar para os bolsos deles.

ISSO É APENAS UMA SINGELA AMOSTRA DE COMO SERÃO OS PONTOS DA CENTRAL DO BRASIL COM AS MUDANÇAS QUE VIRÃO EM OUTUBRO.

A REALIDADE

Bem antes dessa reformulação, a realidade nega por definitivo as declarações dadas pelos porta-vozes das elites. No terminal de linhas municipais da Central, no entorno da Praça da República e da Praça Cristiano Ottoni, pessoas se amontoam em confusão para pegar as linhas de ônibus existentes no local. Os ônibus são muitos, mas saem sempre lotados, com todos os assentos ocupados.

Com a redução das linhas, o que as elites não conseguem enxergar, ou talvez não tenham coragem de argumentar, é que a confusão será ainda maior. Afinal, não serão apenas as pessoas que já chegam de outros municípios (vários por trem), do Centro e da Zona Oeste, que pegarão os ônibus da Central para a Zona Sul, mas também aqueles vindos do Méier, Jacaré, Cidade de Deus, Tijuca, Penha, Bonsucesso e Olaria. Os ônibus dificilmente sairão sem superlotação.

Com a desativação das linhas para o BRT Transcarioca dos terminais de Fundão, Madureira e Alvorada, esse quadro se mostra de forma estarrecedora. Autoridades, tecnocratas e aristocratas tentam dar outros motivos, como "problema de planejamento" ou "teste inicial de quantidade de frota" para minimizar o problema, quando ele vem justamente do esquartejamento de trajetos de ônibus imposto pela Prefeitura.

São ônibus superlotados, que não comportam a demanda das linhas desativadas, que se torna enorme e sobrecarregada. Além do mais, a reposição com mais BRTs irá, isso sim, sobrecarregar o tráfego das avenidas de seus trajetos, de forma ainda mais caótica do que se supôs evitar das linhas de trajetos longos.

O HIGIENISMO

O aspecto que o discurso político-tecnocrático tenta ocultar é que a baldeação que o esquartejamento de trajetos de ônibus provoca é um obstáculo para as populações de bairros suburbanos terão que viver no cotidiano para se deslocarem para a Zona Sul.

Elas terão que pegar ônibus de seus respectivos bairros para o Centro do Rio, e daí para a Zona Sul e vice-versa. Pelo que o plano fará na prática, as pessoas viajarão sentadas no primeiro ônibus, mas terão que viajar em pé no segundo, o que causa desconforto e transtornos diversos, como se nota em veículos superlotados, como o risco de assédio sexual e furtos.

Isso trará muito incômodo e irá intimidar as populações pobres a enfrentar o transtorno toda semana. A ideia é que, com menos ônibus, as populações pobres sejam desestimuladas a se deslocarem para a Zona Sul, criando um higienismo social.

Essa tese pode ser considerada "absurda" por aqueles que defendem a mudança nas linhas, mas ninguém irá assumir o elitismo no discurso. O que se observa é que, no entanto, as elites se sentem incomodadas em ver tantos pobres nas praias de Copacabana, Ipanema, Leblon e Barra da Tijuca e atribuem generalizadamente a eles a ocorrência de arrastões, que só partem de alguns marginais.

Há as favelas da Rocinha e do Pavão-Pavãozinho, subúrbios em plena Zona Sul, aos quais o elitismo social apela às autoridades fazer outras medidas. Mas, a curto ou médio prazo, o fim da ligação direta das linhas da Zona Norte e Jacarepaguá para a Zona Sul, assim como o fim da linha 465 Cascadura / Gávea, tem como objetivo afastar os pobres das ruas da Zona Sul, diminuindo sua presença nesses redutos de classes mais abastadas.

A mudança nas linhas segue a mesma lógica da antiga linha 442 Lins / Urca, que apesar de sua alta rentabilidade e de sua demanda sempre expressiva, foi extinta pela pressão elitista da associação de moradores do bairro do famoso Pão de Açúcar, para evitar que pessoas vindas do Méier e do Engenho Novo usem suas praias.

Esse grave processo de discriminação social é uma realidade que nem todos assumem. E mostram mais um dos inúmeros retrocessos que comprovam a decadência do Rio de Janeiro e sua preocupante situação de cidade referência para o país, mesmo com seus piores defeitos e com as decisões e modismos mais desastrados. É com os problemas dessa cidade que se fará o futuro de nosso país?

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