O grande prejuízo da "religiosização" das coisas é muito mais grave do que se imagina. Quando mesmo a tecnocracia é divinizada e o diploma, em vez de ser visto apenas como um atestado de formação acadêmica, é tido como moeda nobre para o monopólio de poder decisório, então a coisa se torna muito preocupante.
A pretensa superioridade atribuída a todas as decisões que vem "de cima" se expressa sobretudo nas mídias sociais. Alguma coisa, que não é lá aquela maravilha, é imposta, e os internautas, quase que numa unanimidade subserviente, vão endeusando essa coisa e só fazendo comentários elogiosos.
Chega alguém e questiona e esse pessoal reage com fúria, ou, quando muito, com aquela réplica esnobe do tipo "não é bem assim como você pensa, rapaz". Tentam até usar argumentos "racionais", mas o que está em jogo é a defesa fanática e devota daquela arbitrariedade que chegou às mãos dos mortais como se fosse uma "novidade" vinda "do alto".
É aquele projeto para o transporte coletivo que vale apenas porque seu idealizador tem doutorado aqui, PhD lá, pós-PhD mais adiante e fez um monte de palestra na Europa. É aquele carinha que defende a cafonização da cultura popular, mas que tem doutorado em tal lugar, está fazendo pós-doutorado, enche suas palestras de muita gente que aplaude até quando ele tosse.
Ou então é aquela rádio que promete salvar o mundo tocando aquele roquinho comercial que não é grande coisa. Ou é a funqueira que promete uma revolução social com seu CD e, sobretudo, seus glúteos. É aquele refrigerante aguado que surge prometendo mais saúde e frescor para a moçada. É aquele grupo vocal de meninos bonitos que causa histeria nas fãs alucinadas.
Existe até mesmo a divinização em miniatura dos pais, que sempre precisam exercer supremacia moral sobre seus filhos. Eles não podem questioná-los, só devem lhes obedecer, como micro-deuses instalados em seus lares. Mesmo as mais absurdas ordens e as mais desnecessárias pressões paternais não podem ser questionadas, para o bem do "equilíbrio" da hierarquia familiar.
No Sul e Sudeste, e com maior intensidade no Rio de Janeiro - que pôs o evangélico Eduardo Cunha, expressão mais radical do já autoritário PMDB carioca, na Câmara dos Deputados e lá tornou-se presidente da casa legislativa e segundo suplente da Presidência da República, conforme a Constituição - , preocupa essa histeria fanática de divinizar qualquer arbitrariedade.
Criam-se "santos" por todo canto, de Jaime Lerner a Luciano Huck, com critérios que variam da formação acadêmica, da visibilidade, do sucesso midiático, do poder de mercado, mesmo quando suas qualidades não são assim tão meritórias de tanto deslumbramento.
Esse endeusamento, essa "religiosização", é prejudicial porque faz as pessoas não apenas submissas, mas subservientes, já que nesta qualidade, a submissão se torna mais entusiasmada e extrema, uma "escravidão de bom grado".
Essa "religiosização" cria fanáticos, que pouco se importam com revelações que não lhes agradam, abordagens que contrariam suas crenças, questionamentos que desqualificam seus ídolos. Esses fanáticos não querem saber de qualidade de vida nem de justiça social e não raro se convertem em violentos reacionários a humilhar pessoas nas mídias sociais.
O moralismo, a tecnocracia, a hierarquia rígida demais, a imposição de sofrimentos para quem "está embaixo", a fama atingida, tudo isso feito sem o controle dos questionamentos, sem que as pessoas pensem se isso vale ou não a pena, tornam-se perigosos nesse contexto.
E mais perigoso ainda é quando pessoas que questionam isso são ameaçadas de uma forma ou de outra, sendo humilhadas sem ter como reagir com eficiência a isso, sendo forçadas a aceitar como valiosa uma arbitrariedade ou algum fenômeno, ideia ou personalidade medíocre só porque é "sucesso" ou "está aí".
Na Internet, na grande imprensa, na política, a "religiosização" elegeu seus representantes, que se tornam porta-vozes de um reacionarismo que, antes, ocorria escondido em fóruns digitais ou por debaixo das senhas dos portais sociais eletrônicos.
O rebanho "bovino" que se submete quando surge qualquer pretensa novidade decidida "do alto", como se escritórios fossem a materialização dos gabinetes divinos, reage como búfalos ferozes diante de qualquer questionamento. Isso é nocivo, porque a partir daí poderão surgir ditadores, tiranos, déspotas sangrentos que podem nascer num sarcástico "Huahuahuahuahuah" da Internet.
Questionar as coisas não deve ser vista como pecado, como lamento de frustrados, como queixumes de "viúvas", como saudosismo doentio ou como "coisa de maluco". Defini-las assim é o pior veneno da "religiosização" das coisas, do endeusamento de tudo que "está aí" e é "sucesso", embora muito provavelmente seja mais tolerado do que apoiado pela maioria das pessoas.
O fanatismo "brincalhão" de hoje na Internet, junto ao reacionarismo "racional" dos piores comentaristas da mídia, ou do despotismo "democrático e legalista" dos piores políticos que querem extinguir as conquistas sociais arduamente alcançadas, pode significar um prejuízo sem precedentes para o Brasil, um retrocesso que cabe ser revertido hoje, porque mais tarde será mais difícil.
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