sexta-feira, 12 de setembro de 2014

Religiosidade prejudicou adaptação da Doutrina Espírita no Brasil


O texto da socióloga Célia da Graça Arribas, "O Caráter Religioso do Espiritismo", parece um bálsamo para muitos adeptos do chamado "espiritismo" brasileiro, que se aliviam diante de uma tese que atende aos seus interesses de acreditar que a Doutrina Espírita não é mais do que uma "água com açúcar" religiosa.

A tese lhes cai bem, diante do crescimento dos questionamentos severos que o "movimento espírita" anda sofrendo nos últimos anos, e parece pôr fim à polêmica envolvendo facções religiosistas e cientificistas no "espiritismo" brasileiro, favorecendo a supremacia dos primeiros, a pretexto das tradições de diversidade religiosa no Brasil e de sua missão aparentemente moral e filantrópica.

No entanto, uma observação mais cautelosa mostra que a supremacia da facção religiosista no "movimento espírita" brasileiro tornou-se muito mais nociva do que qualquer um poderia cogitar ou admitir, mesmo em hipóteses mais moderadas.

Isso porque a principal herança dessa postura no "movimento espírita" foi a assimilação de valores emprestados do Catolicismo português, principal tradição religiosa vigente no Brasil colonial, difundida pelos padres da Companhia de Jesus. Essa corrente do Catolicismo ainda era carregada de ideias medievais, e ainda no começo do século XIX promovia sangrentas condenações da chamada Santa Inquisição.

Célia afirma que a facção religiosa do "movimento espírita" não traiu as ideias originais de Allan Kardec. Tal visão é um equívoco. Historicamente, o que se viu foi uma traição que veio desde o começo, o bem cortado pela raiz, quando, nos primórdios da FEB, o "complicado" Kardec era deixado de lado, enquanto Jean-Baptiste Roustaing era preferido pelos dirigentes "espíritas", sobretudo a partir de Adolfo Bezerra de Menezes.

O escândalo causado pelas denúncias de que Roustaing estaria impondo teorias absurdas sobre a espiritualidade, que gerou amargos conflitos dentro das lideranças da FEB e criou cisões dentro de um clima bastante tenso, fizeram com que a federação, com o tempo, se aproveitasse da memória curta e escondesse Roustaing depois que ele, antes predileto, virou um problema para os "espíritas".

Foi como se um belo anel, de repente, passasse a apertar os dedos a ponto de feri-los. Roustaing foi deixado de lado, apesar de sua obra Os Quatro Evangelhos ser publicada até hoje, e a FEB, que desprezava Kardec por ser "complicado demais", teve que usá-lo até mesmo para atribui-lo às ideias menos polêmicas que, na verdade, eram originárias de Roustaing.

A prevalência da "religiosidade espírita", em vez de ter encerrado problemas e polêmicas, na verdade criou novos e mais graves problemas. Oficialmente, a "religião espírita" foi uma forma da FEB de promover a "união" entre facções divergentes apenas porque, em tese, promove a solidariedade e o assistencialismo.

Os incomodados apenas teriam que pular fora do "espiritismo" brasileiro, apesar das "portas abertas para todos" dentro da perspectiva "religiosa" da Doutrina Espírita. Mas isso criou sérios problemas, a partir de uma má interpretação do sentido de religião trazido por Allan Kardec.

RELIGIÃO NO SENTIDO ANTROPOLÓGICO

Allan Kardec quis, quando afirmou que a Doutrina Espírita era um somatório de ciência, filosofia e religião, que o sentido da religiosidade nada tinha a ver com o que era promovido por seitas ou igrejas, com seus ritos, dogmas e mitos, mas com o sentido antropológico da ligação original do ser humano com a força que se supõe provável origem de todas as coisas e fenômenos na Terra.

O "espiritismo" brasileiro interpretou mal esse conceito de Kardec e, quando assimilou o sentido "religioso" da Doutrina Espírita, o fez da pior forma, assimilando aspectos do Catolicismo medieval português, e resgatando antigos procedimentos jesuíticos, já a partir da evocação do padre Manuel da Nóbrega, agora sob o codinome Emmanuel.

Em seguida, o "espiritismo" brasileiro se serviu da adaptação de ritos católicos, como a "água fluidificada" (água benta), o "auxílio fraternal" (confessionário), as "palestras espíritas" (sermões), além de um empréstimo de um rito protestante, o "passe" (exorcização), cuja prática rompeu, com o passar do tempo, com a compreensão já superficial e vaga do magnetismo de Franz Mesmer.

Além disso, toda a pregação "espírita" passou a se ancorar em narrativas de cunho moralista, ora surreais - como em Nosso Lar, que narra supostos mundos espirituais - , ora folhetinescas, como na maioria das obras sobre "sofrimentos humanos" na Terra, enquanto abordava aspectos científicos da vida espiritual de forma confusa, pedante e também superficial.

ESTRAGOS

Houve também estragos diversos. A prevalência da facção religiosista no "movimento espírita" não só fez travar a evolução das ideias de Allan Kardec, criando um círculo vicioso da exploração da fé religiosa, como permitiu não só a deturpação do conhecimento kardeciano como também deu margem a uma prática fraudulenta da mediunidade.

Essa fraude se deu por causa tanto do desprezo do conhecimento científico, ou seja, o desinteresse de se aprofundar na Ciência, quanto dos interesses particulares dos dirigentes e até mesmo da fragilidade de médiuns que, na verdade, não possuem todas as habilidades que supostamente são atribuídas a eles.

Denúncias de fraudes contra personalidades badaladas como Chico Xavier e Divaldo Franco, entre outras, deixam vazar essas limitações. Eles não teriam sequer metade do poder mediúnico que alegam ter, limitando sua mediunidade praticamente apenas aos contatos espirituais com seus mentores.

As acusações são pesadas, envolvendo de plágios de livros ao apoio de falsificações na materialização e na psicopictografia (pintura mediúnica), quando supostas materializações seriam na verdade de pessoas vivas encapuzadas usando fotos impressas de gente morta, e os quadros seriam falsificações que destoam dos estilos das obras dos pintores originais atribuídos às obras falsas.

Também se criou uma "escola de psicografia" que transforma qualquer falecido em propagandista religioso, dentro daquele clichê "eu sofri, fui socorrido e encontrei a luz", destoando também das personalidades dos finados. Seriam, na verdade, mensagens mandadas por supostos médiuns, vindas de sua própria imaginação, ou de espíritos zombeteiros se passando por outro alguém.

Junto a isso, há também a "escola de psicofonia", em que, estranhamente, se evocam espíritos de falecidos que viveram no século XIX e dos quais não constam registros sonoros, mesmo quando ainda eram vivos na época do advento do fonógrafo, em 1877, ou da primeira comercialização da tecnologia, no começo do século XX. Seriam, na verdade, falsetes usados pelas vozes dos supostos médiuns.

São aspectos muito negativos que se propagaram e que são tidos como "práticas autênticas" de mediunidade, chegando mesmo a ludibriar juristas, acadêmicos e críticos e arte, que aceitam essas práticas como "verdadeiras" mais pelo temor de uma espiritualidade que não compreendem do que pela aceitação da "doutrina espírita" tal como é feita no Brasil.

Isso tudo prejudicou até mesmo a adaptação da Doutrina Espírita no Brasil. Célia Arribas está errada na sua defesa. O "espiritismo" brasileiro traiu, sim, as ideias originais de Kardec e desprezou sua essência, pois o que a socióloga entende como "adaptação local" foi a corrupção da doutrina em prol de vícios religiosos antigos.

Deste modo, o "espiritismo" brasileiro desprezou o pensamento científico e, na disputa com setores ortodoxos da Igreja Católica, se corrompeu ao se transformar numa seita moralista, estando muito mais próximo de ser um neo-catolicismo espiritualista do que uma adaptação brasileira da doutrina de Allan Kardec, intelectual francês bajulado no discurso mas ignorado na prática pelos "espíritas" brasileiros.

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