Quem está acostumado com a forma com que hoje se trabalha o Espiritismo no Brasil deve estranhar muito a figura de Jean-Baptiste Roustaing. Pessoas assim estão habituadas a aceitar a visão purista de um cientificismo de Allan Kardec ocorrido sem problemas na França, harmonizada com o religiosismo aqui traduzido por Bezerra de Menezes e Chico Xavier.
Essas pessoas só entendiam a problemática espírita pela forma maniqueísta que colocava de um lado os espíritas e de outro os católicos. A espiritualidade, a reencarnação e as curas mediúnicas, de um lado, e o ritualismo sacramental católico romano, de outro. Daí o choque que muitos levam diante das revelações pouco positivas dos bastidores do "movimento espírita" no Brasil.
Aparentemente, parece superado o episódio de Jean-Baptiste Roustaing, oficialmente tido como um suposto adepto de Allan Kardec que provocou uma polêmica no movimento espírita da qual poucos se recusam a falar. Muito, muito poucos.
Até mesmo imagens de Roustaing não aparecem na Internet. Para o "bem" e para o "mal", pessoas incômodas aos interesses da FEB são deixadas de lado, seja o Jean-Baptiste Roustaing que até inspirou as bases ideológicas do "espiritismo" brasileiro, seja o sobrinho de Chico Xavier, Amauri Pena, são excluídas do histórico "espírita", não sendo divulgadas sequer fotos.
O que é que faz Roustaing ter virado um "palavrão" para os "espíritas" brasileiros? E por que ele, quando é mencionado, é tão vagamente citado dentro dos círculos da FEB e dos "centros espíritas" vinculados institucional ou ao menos ideologicamente (quando "dissidentes")? E por que a FEB julga "superada" a sua influência se ela aproveita seu legado até hoje?
Roustaing, o advogado que "codificou" o livro Os Quatro Evangelhos, supostamente a partir dos quatro evangelistas (Mateus, Marcos, João e Lucas), se declarou desafeto de Allan Kardec quando este, ainda que de forma bastante educada, criticou os métodos de concepção do livro, feitos por uma única médium.
Kardec recomendava que mensagens espirituais fossem colhidas por diferentes médiuns, de procedências diferentes e sem vínculo entre si, para que se pudesse verificar a autenticidade autoral, naqueles tempos em que não havia registros sonoros e de imagens e, portanto, os recursos para captar a manifestação espiritual eram muito mais limitados.
Uma má interpretação, trazida provavelmente de um deslize de tradução, atribuiu a Kardec a impressão de que Os Quatro Evangelhos não apresentava desacordo de ideias em relação a O Livro dos Espíritos e O Evangelho Segundo o Espiritismo. Mas Kardec talvez quisesse dizer que, a princípio, havia alguma afinidade de ideias entre seus livros e os de Roustaing.
O que ocorreu para permitir a ascensão brasileira das ideias de Roustaing, já polêmico na França, foi porque a doutrina de Kardec havia se enfraquecido após seu falecimento, em 1869, até mesmo antes desse óbito, já que as ideias kardecianas causaram muita polêmica pelo alto teor científico e pelos debates que não eram compreendidos por mentes ainda fortemente católicas.
Roustaing diluiu a Doutrina Espírita para ideais católicos, mesclando espiritualidade com misticismo e moralismo. Foi adotado pelos brasileiros, até antes de Allan Kardec, a partir da divulgação do médico Adolfo Bezerra de Menezes, que, apesar de ser conhecido como o "Kardec brasileiro", preferia muito mais os ideais "de fé" trazidos por Roustaing.
FALTA INVESTIGAR O ESCÂNDALO ROUSTAING / FEB
O que fez Roustaing, tão preferido e adotado fanaticamente pelos dirigentes da Federação "Espírita" Brasileira, ser hoje descartado, apesar da obra Os Quatro Evangelhos ser mantido no mercado até hoje, só parece um mistério porque a FEB manipulou a memória histórica para que só sobrasse o lado "positivo" da trajetória do "espiritismo" brasileiro.
Mas sabe-se que as ideias de Jean-Baptiste Roustaing causaram uma grande confusão e criaram uma ruptura tensa no "movimento espírita", no qual se destacaram figuras associadas ao Espiritismo científico, fiel as ideias de Kardec, como Afonso Angeli Torterolli, Deolindo Amorim e José Herculano Pires.
Até mesmo o dirigente Luciano dos Anjos (recentemente falecido), que antes havia sido um fanático defensor das ideias de Jean-Baptiste Roustaing, acabou mudando completamente de lado, denunciando as fraudes e os interesses particulares por conta dessa corrente ideológica.
Podemos localizar todo esse escândalo entre 1884 e 1962, na verdade um rol de escândalos e polêmicas nos bastidores do "movimento espírita", indo desde a fundação da FEB à mais dura polêmica relacionada a uma fraude "espírita", que foi a acusação contra o "médium" Divaldo Franco de ter plagiado um livro do já plagiador conhecido e "médium" Chico Xavier.
Entre a fundação da FEB e o mais forte escândalo que quase pôs a criar um conflito entre dois ídolos "espíritas", aparentemente amigos entre si, foram 78 anos, o que contribuiu para o baixo crescimento da Doutrina Espírita no Brasil, apesar das estatísticas "otimistas" da FEB.
Mas o próprio IBGE, confrontando a tese da FEB, afirmou que o Espiritismo, no Brasil, havia crescido, entre 1940 e 1910, apenas 0,9%. E isso quando são as pessoas declaradas "espíritas", dos quais a maioria não é praticante - só recorre aos "centros espíritas" para tratamentos terapêuticos - e outra parte significativa segue a corrente de Bezerra / FEB / Chico Xavier.
Então, com esse diagnóstico, as ideias de Allan Kardec ganham baixíssima projeção, se levarmos em conta que, dos 2% dos ditos "espíritas" brasileiros, algo em torno de 98% está ligado ou à adesão ocasional de tratamentos "espirituais" ou à crença na corrente espiritólica de Chico Xavier e companhia.
Dessa polêmica relacionada a Roustaing, sabe-se que o grosso dos escândalos, relacionados diretamente a Os Quatro Evangelhos, pode ser situado, no tempo, entre um período levemente posterior ao da fundação da FEB, em 1886, com Bezerra de Menezes como seu presidente, e a instauração do Pacto Áureo, que firmou a diretriz religiosista da FEB, em 1949.
Divergências entre científicos e religiosistas no "movimento espírita" eram anteriores até mesmo à fundação da FEB, mas é possível que, já no século XX, elas tenham se acirrado completamente, criando polêmicas duras que refletiram na imprensa brasileira. A ascensão de Chico Xavier, primeira grande celebridade do "espiritismo" brasileiro, nos anos 1930, só complicou as coisas.
Denúncias que vão desde os desvios das ideias originais de Allan Kardec até acusações de fraudes e charlatanismo em práticas supostamente espíritas, que atingiram o ápice entre os anos 1930 e 1950, arranharam seriamente a reputação da Federação "Espírita" Brasileira, dando a seu então presidente, Antônio Wantuil de Freitas, uma reputação que hoje se equipara a de Ricardo Teixeira na Confederação Brasileira de Futebol.
O que se deve fazer, nas análises questionadoras do "movimento espírita", é trazer à Internet esses antigos documentos, além das fotos de Amauri Pena e de Roustaing, assim como as polêmicas mais antigas.
Deve-se resgatar, também, antigas entrevistas - como a misteriosa entrevista de André Dumas à revista Manchete, denunciando a catolicização do Espiritismo no Brasil, dos quais só há vaga citação, mas nenhuma reprodução de seu texto e de fotos - e reportagens, para criar um acervo de questionamentos mais consistente e conciso na Internet, para entendermos melhor não só Roustaing mas os problemas em torno da FEB e do Espiritismo no Brasil.
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