SEPULTAMENTO DE ISAMARA FILIER E SEU FILHO JOÃO VICTOR, DOIS DOS MORTOS DA CHACINA DE CAMPINAS.
Na virada de 2016 para 2017, uma chacina comoveu o país, uma tragédia na qual 12 pessoas foram assassinadas por um homem armado, que se matou em seguida. A chacina de Campinas é considerada como um dos fatos que ainda serão comuns no Brasil das convulsões sociais. Dias antes, um ambulante foi morto numa estação de metrô em São Paulo por dois homens que perseguiam uma travesti que o vendedor tentava defender.
No caso de Campinas, o técnico de laboratório, Sidnei Ramis de Araújo, de 46 anos, sentia profundo ódio por sua ex-mulher, Isamara Filier, de 41 anos, de quem se separou de forma tensa, depois que ela o denunciou por violência doméstica seis vezes à delegacia, além de acusar o ex-marido de cometer abuso sexual contra o filho, João Victor, de oito anos.
Sidnei havia escrito uma carta para o filho, no qual chamava a maioria das mulheres brasileiras de "vadias", incluindo sua ex-esposa e a presidenta Dilma Rousseff. Dotado de um reacionarismo machista - embora ele não se definisse como tal - , ele ainda chamou a Lei Maria da Penha de "vadia da penha", além de falar mal até das ocupações estudantis em protesto contra o govenro Temer (Sidnei chamou os manifestantes de "vagabundos").
Imaginamos se Sidnei fosse um "espírita" e, seguindo a postura do juízo de valor da pediatra de Rondonópolis, ele definisse as vítimas como "predestinadas ao resgate espiritual", e estava sendo agente das leis de causa e efeito.
Esse é o grande mal do "movimento espírita" e seu moralismo bastante severo, que, em certo sentido, já segue o mesmo caminho dos machistas vingativos que cometem feminicídio conjugal, na medida em que também diz que a vítima é "culpada".
Embora aparentemente o "espiritismo" brasileiro pede para as pessoas não julgarem, há casos de julgamentos de valor muitíssimo graves e ofensivos. No livro O Voo da Esperança, o médico e "médium" Woyne Figner Sacchetin chegou a ser processado por uma família das vítimas do acidente da TAM (que completa 10 anos este ano) por causa da acusação de que elas teriam sido romanos sanguinários da Gália. Woyne ainda atribuiu a obra ao espírito de Alberto Santos Dumont, o Pai da Aviação, ofendendo a sua imagem de engenheiro humanista.
O próprio Francisco Cândido Xavier também cometeu semelhante crueldade. No livro Cartas e Crônicas, de 1966, ele acusou as vítimas do incêndio num circo em Niterói, ocorrido uma semana antes do Natal de 1961, de também terem sido romanos sanguinários da Gália. Se valendo da carteirada religiosa, Chico Xavier não foi punido por tão gritante ofensa aos humildes que foram ao circo, e ele ainda ofendeu a memória de Humberto de Campos em mais uma atribuição de autoria a ele, mesmo disfarçada pelo pseudônimo de Irmão X.
Distanciado do cientificismo humanista de Allan Kardec, o "espiritismo" tem como um de seus erros mais graves o moralismo que cria uma relação desigual entre sofredores e algozes. Aos sofredores, há o apelo para que aceitem as desgraças como "caminho para as bênçãos", tomado com base na Teologia do Sofrimento. Quanto aos algozes, há o conceito do "fiado espírita", tese na qual a pessoa que cometer graves erros pode "pagar pelo que fez" na próxima encarnação.
Esse julgamento de valor é originário de Jean-Baptiste Roustaing, que em Os Quatro Evangelhos descreve a vida carnal como um "castigo", na qual a pessoa terá que sofrer desgraças para pagar supostas faltas espirituais e garantir o "caminho para o Céu". É uma tese calcada na Teologia do Sofrimento, que Roustaing defendia, e que Chico Xavier, devoto católico, era um dos maiores e o mais famoso dos simpatizantes brasileiros.
Com isso, como é que ficariam as vítimas da chacina em Campinas se elas fossem acusadas de "devedoras" e tivessem sofrido a tragédia como "reajustes morais" de vidas passadas? Será que os "espíritas" têm moral de endossar uma acusação dessas, se ela tivesse sido incluída na carta de Sidnei? O silêncio dos "espíritas" quanto ao caso da pediatra mostra o preço que os "espíritas" pagam pela raiz roustanguista, nunca arrancada das bases da doutrina brasileira.
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