terça-feira, 4 de outubro de 2016
As cobranças extremas do alpinismo social
Para quem não atingiu o alto da pirâmide, num país liderado pela plutocracia que é o Brasil, todo tipo de cobrança é válido. Pouco importam sobrecargas, pressões diversas, retrocessos, imposições e ameaças, o que está embaixo e sofre mais têm que fazer tudo e ainda por cima sorrir.
Como alguém que, no alto da montanha, enxerga a cidade lhe parecendo uma miniatura e a multidão reduzida a um monte de pontinhos minúsculos, a pessoa que está no alto da pirâmide por uma questão de status, seja idade, condição financeira, status social, religioso, político, jurídico, midiático e lúdico (no caso, a fama e a popularidade), vê a pessoa que está embaixo como um nada qualquer.
Para quem está em cima, o que está embaixo não sofre. O sofrimento do outro, do ponto de vista de quem tem algum privilégio, ainda que não seja o econômico, tem pouca importância, as angústias e limitações são muito mais do que frescuras e as incapacidades, uma demonstração de preguiça.
Numa retomada de ideais ultraconservadores em que o indivíduo perde a importância numa multidão reduzida a um "gado", a individualidade, erroneamente confundida com o egoísmo, é condenada num cenário em que os verdadeiros egoístas é que ditam as normas e obtém vantagens descomunais.
Isso é ruim. A metáfora da "competição igual" entre desiguais, que faz, por exemplo, no mundo animal, o peixe não poder atingir, pulando, o topo de uma árvore, e uma girafa atingi-lo sem a escalada que é necessária a um macaco, é muito ilustrativa nos tempos de hoje.
Quem não está no topo da pirâmide e sofre depressão, tem em sua frente um monte de limitações, um monte de impasses etc, mas tudo isso é considerado "frescura" ou "bobagem" para quem está no lado de cima. Na competição do dia a dia, qualquer peixe pequeno pode dar um salto e atingir o topo de uma grande árvore. Se não conseguir, é "covarde" e "não tem ambição em vencer na vida".
O Brasil está afogado em retrocessos depois que Michel Temer assumiu o poder e as forças conservadoras tentam transformar o futuro numa síntese de vários momentos obscurantistas do passado: em certos momentos, lembrando os tempos dos generais Médici e Geisel, em outros da República Velha, em outros o Brasil colonial e, em mais outros a Idade Média do "velho mundo".
É fácil cobrar de quem não está no alto, e cobrar mais e demais. Cobrar e impor barreiras, dizer para a pessoa agir e pôr mais obstáculos, brincar com o espírito de iniciativa de quem não obteve algum privilégio, como se atirasse bolas de neve contra alpinistas.
Mas quem está em cima não está preparado para encarar o temporal, quando o alto da pirâmide social é aberto e não possui abrigo. Esquecem os que estão no alto da pirâmide que as cobranças lhes são muitíssimo maiores e mais extremas, mas eles tentam, nas suas zonas de conforto, jogar o fardo mais pesado para quem está embaixo.
A burocracia, as conveniências sociais, o autoritarismo jurídico, o reacionarismo político, a truculência digital de quem se acha o "rei" nas redes sociais, as exigências descabidas, o moralismo severo, é muito fácil quem estar "em cima" cobrar demais de quem está "no lado de baixo".
O mais cruel e desumano é quando se cobra e não se cria condições para a pessoa se esforçar. Ou, se elas existem, estão ao lado de dificuldades pesadas e baixa chance de êxito. Numa ideologia moralista, é maravilhoso quem está embaixo se esforçar demais, dar murro em ponta de faca, se sobrecarregar em mil iniciativas.
Para quem está em cima, se a pimenta arde nos olhos, a pessoa é que tem que adaptar seu olhar e fingir que a ardência não existe. Se alguém pisou no calo, não se pode sequer gemer. Se a pessoa dirige um carro numa pista escorregadia e com uma neblina na frente, a ideia é aumentar a velocidade, mesmo.
"Meter a cara", "ter jogo de cintura", "dar duro de si mesmo", "ralar mesmo". Tudo isso é lindo trazido por um moralista que não tem noção das dificuldades de uma pessoa, e está ali como expectador dos sacrifícios alheios, não esperando vencedores, mas esperando pessoas ferradas e em algum sufoco sobrevivendo e ultrapassando obstáculos intransponíveis.
As pessoas que estão na pirâmide social por algum critério, da idade à fama, do cargo político ao prestígio religioso, mais parecem a plateia de uma arena, vendo um gladiador sobrevivendo ao combate do inimigo ou à fome voraz de um leão. Mil vezes mais desumano é aquele que cobra demais de quem não pode fazer, e achar que suas dificuldades são frescuras.
Até o "espiritismo" é assim. O palestrante sempre dizendo que o sofrimento é "fácil", algo que todo ideólogo da Teologia do Sofrimento faz. Ele enrola dizendo que desgraças são "aprendizados" e nunca está disposto a medir o desafio conforme a capacidade de quem encará-lo. Para ele, tanto faz macacos e peixes serem designados para saltar ao topo de uma árvore. Esforço, para o remediado, é qualquer nota.
Afinal, a pessoa que está remediada na vida não imaginou que, um dia, ela pode perder seus benefícios e sua posição social confortável e ter de encarar na própria pele as dificuldades pesadas, angustiantes e de dificílima superação, mesmo não tendo condições para isso? Cobrar demais dos outros é fácil, difícil é assumir as próprias cobranças.
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