sábado, 11 de fevereiro de 2017
Conto da Gata Borralheira e o moralismo "espírita"
A religião é um arremedo de conto de fadas para adultos. Um arremedo piorado, no qual se perde o despretensiosismo da alegoria literária, na medida em que a religião tenta exercer supremacia na realidade objetiva das pessoas.
Por isso é que as pessoas, talvez diante de neuroses ou dramas muito mal resolvidos da infância, procuram a beleza conselheira perdida nas antigas estórias infantis, mas corrompidas por uma ilusão de racionalidade que faz a fé religiosa, por mais fictícia que possa parecer, deseje ser mais realista que a realidade.
E é isso que faz os contos de fadas terem uma grande vantagem. Elas trazem lições de vida ou mesmo avisos de alerta que se distanciam dos receituários moralistas que as estórias religiosas, sem excluir o "espiritismo", trazem para as pessoas "crescidas".
Um exemplo é o conto da Gata Borralheira, também conhecida como Cinderela, cuja origem remete a uma estória contada na China por volta de 860 antes da nossa era. Órfã de um comerciante rico, Cinderela vivia com a madrasta e as meias-irmãs da jovem, e, apesar de sua bela aparência, diferente da aparência grotesca das outras três, a Gata Borralheira vivia uma vida miserável.
Bondosa e paciente, a Gata Borralheira tinha que fazer as tarefas domésticas, diante de tantas humilhações das três algozes, e quando podia se refugiava no quarto para conversar com os bichinhos da floresta.
Certa vez, a jovem foi costurar um vestido para ir ao baile do Príncipe, com os retalhos de roupas que recolheu no lixo, e criou um vestido modesto, mas bonito. Chorou e, de repente, depois de tantas orações, apareceu uma senhora que se identificou como "fada-madrinha" e fez uns arranjos na vida da moça. Transformou seu traje de serviço em vestido de gala, os bichos se tornaram homens, um chofer e seus assistentes, e uma abóbora foi transformada em carruagem.
A fada-madrinha só advertiu que a moça, rebatizada Cinderela, voltasse para casa quando desse a meia-noite, para que o encanto não fosse desfeito aos olhos das pessoas. Ao chegar ao baile, Cinderela viu várias mulheres dançando, cada uma em sua vez, com um príncipe, Ele, impressionado com a beleza da jovem moça, a convida para dançar. Os dois se sentem atraídos pela afinidade pessoal e física.
De repente, no auge do baile, o relógio bate meia-noite. A Cinderela não tem tempo para ir embora sem que o encanto fosse desfeito na ocasião, e ainda deixou um dos sapatos de cristal no caminho, enquanto ia embora andando com seus bichinhos e uma abóbora.
Aí o príncipe, vendo que um sapatinho brilhante foi abandonado na escadaria de acesso ao salão, a pegou e resolveu testar o calçado em diversas mulheres, cujos pés eram muito grandes para caber na pequena sandália.
Chegando à casa da madrasta e suas duas filhas, sem perceber que lá vivia a enteada Cinderela, o Príncipe foi testar o pequeno sapato nos pés das três. Era pequeno demais para pés graúdos e feios. O Príncipe, de repente, viu uma moça parecida com Cinderela fazendo a faxina e as outras disseram a ele que é só uma serviçal sem valor. Mas o Príncipe ordenou para que se chamassem a moça para experimentar o sapato e as três, a contragosto, cederam.
Diante do êxito do teste, Cinderela e o Príncipe se reconheceram, se apaixonaram e ele a convidou para arrumar as coisas e se mudar para o casal viver junto. A madrasta e suas filhas ficaram arrasadas. Consta-se que a relação de Cinderela com o Príncipe resultou num casamento harmonioso e estável.
TEOLOGIA DO SOFRIMENTO?
Os "espíritas" festejam. Para eles, é um delírio ver alguém encarar sofrimentos e humilhações, suportando a arrogância e o arbítrio dos algozes, e depois sair dessa com um benefício. À primeira vista, o conto da Cinderela é um prato cheio para os "espíritas" dizerem que se trata de um caso de superação, como tantos outros trazidos pela literatura de Francisco Cândido Xavier e seus séquitos.
É verdade que o conto da Gata Borralheira traz várias interpretações. Mas, tomando a narrativa tradicional e dispensando o aspecto da oração, pois a forma mais conhecida e popular do conto mostrava que a moça apenas chorava depois de ter o vestido rasgado, se vê que as situações mudam quando se observa o conto sob a ótica da metáfora.
Em primeiro lugar, o conto é uma metáfora das injustiças sociais representadas pelos privilegiados, a madrasta e suas duas filhas biológicas, e pela desafortunada, a Gata Borralheira. O Príncipe, dispensando o detalhe de ser um poderoso aristocrata, até pela personalidade humanista descrita no conto, representa o progresso social e a qualidade de vida.
Note-se que, do contrário da moral "espírita", a madrasta e suas filhas não saíram beneficiadas, assim como a Gata Borralheira não mudou os seus valores para ser beneficiada. Além disso, um outro aspecto pode deixar os "espíritas" bastante decepcionados.
Trata-se dos benefícios provisórios do feitiço da fada-madrinha. Ela transformou bichinhos em homens e abóbora em carruagem, além de transformar o vestido sujo e miserável em roupa de gala. Mas tudo isso com validade para meia-noite. Isso é metáfora para a caridade paliativa, de duração efêmera, algo que se agrava se considerarmos que Cinderela orou.
Por outro lado, levamos em conta que Cinderela não ficou satisfeita com sua situação. A moral "espírita" pede para as pessoas se resignarem com as desgraças, e em certas mensagens até se alegrarem com tais infortúnios.
Além disso, os benefícios permanentes não vieram da ação da fada-madrinha, mas do esforço do Príncipe, que achou um sapato de cristal e o pegou, uma metáfora para a solidariedade de alguém progressista com a pessoa que não aguenta mais sofrer. E o fato do sapatinho ter servido em Cinderela e não em outras mulheres revela que o benefício não é aproveitado da mesma forma por todos, havendo quem pudesse aproveitá-lo melhor, com dignidade e apreço.
Isso sugere que o conto da Cinderela revela uma realidade muito mais complexa do que o moralismo "espírita". Se dependesse do "movimento espírita", Cinderela permaneceria desgraçada, se limitando apenas a ser amiga do Príncipe, que se casaria com uma das meias-irmãs da jovem e todos viveriam felizes para sempre em situações mais desgraçadas. A Teologia do Sofrimento só quer ver alegria na desgraça.
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