terça-feira, 7 de fevereiro de 2017

Brasil e o moralismo seletivo de parte da sociedade


Pouco tempo atrás, faleceu, vítima de Acidente Vascular Cerebral, a ex-primeira-dama Marisa Letícia Lula da Silva. Ela era mulher do ex-presidente Lula, uma das pessoas mais hostilizadas e desmoralizadas do país, ele mesmo atingido por boatos violentos e calúnias das mais assustadoras.

O que mais espanta é que, nas redes sociais, muita gente "comemorou" a morte de Marisa Letícia e há quem diga que o marido "está na fila". O ódio seletivo dos anti-petistas revela um país de moralismo tendencioso movido pelas conveniências.

Só para se ter uma ideia, essas mesmas pessoas não se indignam com os escândalos que acontecem no governo Michel Temer e que são de arrepiar os cabelos. A escolha do fluminense Wellington Moreira Franco para um cargo estratégico do atual governo, aparentemente "semelhante" à escolha de Lula como chefe da Casa Civil do governo Dilma Rousseff, não causou a menor revolta popular.

Quando Lula fazia cerimônia de posse para a Casa Civil - ato anulado depois por pressão do juiz Sérgio Moro e decisão de Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal - , criou-se um grande movimento de protesto organizado pelo Movimento Brasil Livre e outros grupos, pedindo a saída de Dilma Rousseff. Naquela época, a nomeação de Lula era vista como uma "afronta ao povo brasileiro", segundo a visão conservadora difundida na época.

Quanto à nomeação de Moreira Franco, falou-se que ele "já estava no governo" e que "era uma formalidade que vai fortalecer a República", ninguém reagiu, e a imprensa apenas deu lacônicas notícias dizendo que o ex-governador do Rio de Janeiro é citado várias vezes em delações da Operação Lava Jato. Os membros do governo Temer usaram como desculpa o fato de que "todos são delatados" e isso "não abala" o cenário político no poder.

Vivemos um período de seletividade ética. As pessoas que "comemoram" morte de petistas nas redes sociais são as mesmas que se arrepiam quando um assassino rico está gravemente doente. Isso segue um padrão moralista que chega a dar tratamentos diferentes a pessoas que, por exemplo, anunciam estar em estágios avançados de câncer.

Se o portador de câncer é um ator de teatro de vanguarda, a sociedade moralista se resigna e até reza para ele sair vivo desta, mas se ele morre, ela se conforma. Se o portador de câncer é um músico de heavy metal, a sociedade moralista já torce para ele "bater as botas" o mais rápido possível. Agora, se ele é um homem rico que cometeu um feminicídio conjugal e está impune, a sociedade moralista se sente ofendida, achando que o câncer é "mimimi" e o rapaz está "firme e forte".

É estranho isso. Afinal, não são pessoas rancorosas e vingativas que pressentem tragédias com feminicidas, que, pelo ato que cometeram - mataram namoradas ou esposas - , sabendo do risco de suas atitudes, são os mais vulneráveis a pressões emocionais e instintivas que é bem menos provável que pessoas assim pudessem viver mais do que 60 anos de idade. Muitos que alertam isso são amigos e pessoas que mais amam os referidos homens, e sabem que homicidas não são invulneráveis.

Pelo contrário, são pessoas que aceitam linchamento de pobres que furtam gado de fazenda, de vendedores ambulantes que, acidentalmente, derrubam o retrovisor de um carrão por um manuseio, sem querer, de sua caixa de produtos, é que acham "preconceituoso" dizer que um feminicida rico, por ter fumado demais ou por aparecer extremamente magro e abatido, pode falecer de repente (e, se falece, não ganha uma nota na imprensa, apesar de ser figura de grande repercussão).

Marisa Letícia, por ser esposa de um carismático líder político que contraria os interesses da mídia dominante, podia, segundo a sociedade moralista seletiva, morrer pelas pressões emocionais que ela não causou e que, a contragosto, contraiu pela campanha caluniosa da grande imprensa e da Internet. Mas um empresário, médico, jornalista ou promotor que assassinou a esposa por ciúmes não pode morrer pelas pressões emocionais causadas pelas consequências de seus próprios atos?

A seletividade moral também faz com que páginas virtuais de jornalismo investigativo e questionamento de valores estabelecidos, porém obsoletos e injustos, tenham mais risco de serem banidas do que páginas de calúnias e ofensas, cujos autores demonstram um claro rancor e se apropriam de maneira leviana e difamatória do material produzido pelas suas vítimas.

No Brasil se vê cada vez mais se multiplicarem casos de pessoas expressando pontos de vista elitistas dos mais ofensivos, algo inimaginável até três anos atrás. Pessoas que já defendem abertamente a redução de salários, a venda das riquezas brasileiras para empresas estrangeiras, o fim da educação pública - a educação gratuita seria um "privilégio" de escolas religiosas comprometidas com o projeto medieval Escola Sem Partido, das neopentecostais às "espíritas" e a privatização de tudo.

Claro que esse reacionarismo sempre esteve latente desde a década de 1990, por conta de retrocessos vividos pela grande mídia - da multiplicação de programas policialescos de TV até o reacionarismo gradual da emissora paulista 89 FM, que virou a "Jovem Pan do rock", sem falar da Rede Globo da revista Veja e outros - , e se intensificou nos tempos do Orkut, com sociopatas entrincheirados até em comunidades como o inócuo "Eu Odeio Acordar Cedo". Mas hoje o pessoal foi longe demais.

Até na busologia existe caso de blogue de calúnias, feito por um ex-funcionário de prefeitura da Baixada Fluminense frustrado de não ter seguido carreira política nem ter integrado o governo do então prefeito carioca Eduardo Paes. O infeliz havia resolvido criar sua página para, de etapa em etapa, desfazer seus desafetos um a um até sobrar ele para comandar a busologia carioca.

Caluniar virou moda, para uma sociedade que mal consegue digerir conceitos de moralismo repressivo com os de liberdade de expressão. Essa má digestão que gera uma disenteria moral violenta, reflete o medo que uma parcela da sociedade tem com as mudanças nos tempos e com a perda total de paradigmas e privilégios que faziam mais sentido em meados dos anos 1970.

O medo de ver um outro tipo de presidente da República no poder. Ou o medo de ver gente menos arrivista passando a perna nos ambiciosos doentios. Ou ver aquele feminicida rico e relativamente jovem, que acabou de sair da cadeia, ser encontrado morto em casa porque sofreu um infarto fulminante por ter visto, na televisão, uma antiga canção que embalava o namoro dele com sua vítima. Ou o medo de ver outros valores mais dignos derrubando privilégios antes imbatíveis.

E o pior é que, na religião, como as vingativas seitas neopentecostais e o complacente "espiritismo", nota-se mais um consentimento a esse cenário de horror do que mesmo lamento e pesar. Os neopentecostais preocupados em voltar aos tempos bíblicos de um Deus "genocida" e os "espíritas" pedindo para os sofredores aceitarem e até agradecerem algozes pelas desgraças vividas. Para piorar, o juízo de valor "espírita" de supor uma "vida passada" ao sofredor é de um cinismo chocante.

Afinal, os "espíritas" simplesmente emporcalharam o legado de Allan Kardec, com um roustanguismo muito mal disfarçado com pretenso Espiritismo de conceitos igrejeiros e uma concepção medieval e ultraconservadora de "bondade", que é restrita ao assistencialismo. Uma "caridade" que só serve para justificar a produção de mensagens fake "espirituais" e a divulgação de conceitos deturpados que envergonhariam Kardec.

Até pelas responsabilidades que deveria assumir na prática, e não numa teoria marcada pelo balé de belas palavras, os "espíritas" estão em situação ainda mais grave, pelas contradições que esconde por baixo do tapete, enquanto aguardam que os críticos da deturpação espírita se retratem e aceitem os "médiuns" dotados de culto à personalidade como "espíritas autênticos, mas mal informados", apenas pelo pretexto da filantropia e das palavras bonitas.

Se a bondade se reduz a essa exploração feita pelo prestígio religioso, com simulacros de filantropia que ajudam muito pouco e só servem para dar cartaz ao "benfeitor" da ocasião, às custas da comoção coletiva e pelo mel das palavras, então não conseguiremos sair desse cenário calamitoso em que se vive o país, marcado pela raiva e pelo moralismo seletivo.

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