terça-feira, 23 de agosto de 2016

O Brasil e as idealizações da pobreza e da caridade

CRIANÇA ESPERANÇA, DA REDE GLOBO, É UMA VITRINE PARA A "CARIDADE PALIATIVA" DOMINANTE NO BRASIL.

Para muita gente, bondade é uma qualidade subordinada à religião. A bondade é medida não pelo número de beneficiados atingido, mas pelo selo religioso que carrega, e a ideia de que a cultura das classes pobres tem que ser regulada pela mídia e pelo mercado também acompanham essa visão escancaradamente elitista, porém paternalista.

Um artigo da Carta Capital sobre o Criança Esperança, semanas atrás, de autoria da antropóloga Rosana Pinheiro-Machado traz muitas questões, tanto para a forma com que intelectuais veem o entretenimento das classes populares quanto a maneira que as elites ou mesmo a classe média vê a caridade humana.

A ideia de uma bondade paternalista, de uma apreciação supostamente positiva dos miseráveis, traz uma visão de contos-de-fadas que domina as mídias sociais e o imaginário politicamente correto que faz defender, por exemplo, que a popozuda do "baile funk" ou a periguete do "pagodão" baiano deva se casar com um nerd saído do bacharelado ou pós-graduação de uma universidade pública.

Tudo é "possível" no imaginário das mídias sociais, como se houvesse uma liberdade sem limites, e os internautas que escrevem no Facebook, no WhatsApp e botam imagens no Instagram ou no SnapChat fossem o máximo de evolução moral encontrada no Brasil.

No entanto, a visão de caridade ou solidariedade com o outro esconde neuroses, preconceitos, sendo apenas atenuantes, formas de dissimular a culpa de intelectuais e aristocratas que veem o povo pobre de maneira negativa e desprezível.

É o jornalista musical ou o antropólogo que fazem elogios entusiasmados ao "funk", que espetaculariza a pobreza, ou ao ídolo brega do passado que "incomodava as elites", dando a falsa impressão de que tais pensadores estão "solidários" ao povo pobre e a cultura a este atribuída.

É o internauta que acha que um "médium espírita" é "o maior filantropo do Brasil" porque investe numa caridade que, embora beneficie menos de 1% do povo brasileiro e adote um método educacional inócuo no qual se ensinam dogmas igrejistas, tem sua "máxima importância" justificada pelo status religioso.

CARIDADE PALIATIVA

Rosana não condena a caridade em si, mas chama a atenção para o abismo desses atos simbólicos e uma atitude real de discriminação, que esconde situações hipócritas como a da diarista que não aceita a roupa velha dada pela patroa.

A caridade paliativa, que é a ação que não interfere nas estruturas de desigualdades sociais existentes, antes apenas evitando, de maneira relativa, os efeitos mais extremos de sofrimento humano, é que representa um problema que só reforça as injustiças sociais.

O crítico musical que implora, quase que aos choros, para que Odair José, Alexandre Pires, Zezé di Camargo & Luciano e Tati Quebra-Barraco sejam incluídos no "primeiro time da MPB", em seus festejados artigos, é o mesmo que fica horrorizado quando a diarista, ao fazer uma faxina na coleção de discos do jornalista, demora demais observando um raro CD de Hermeto Paschoal.

A antropóloga que, feliz da vida, atribui aos "bailes funk" mais rasteiros, com gente fazendo posições grosseiras de quem parece "defecar" no chão, de cócoras, ou empinando os glúteos para a frente da plateia, o "mais admirável ativismo social" do Brasil, escrevendo isso até em jornais de esquerda, mas fica horrorizada em ver mais uma marcha do Movimento dos Sem-Terra complicando o trânsito no momento em que a mesma intelectual volta para casa dirigindo seu carrão.

O cineasta que fica feliz ao exaltar a esganiçada dupla "sertaneja", com vocais desafinados e um repertório esquizofrênico que, em vez do genuíno cancioneiro caipira, há confusos arremedos de country e bolero, mas se aborrece quando o mesmo MST aparece numa reportagem pedindo para protestarmos contra o capitalismo excludente.

Ou a acadêmica que adora definir como "feminismo" as periguetes ostentando corpos siliconados feito mercadorias sexuais, exalta a prostituição como forma de afirmação da feminilidade das moças pobres, mas se irrita quando moças que atuam na prostituição apelam desesperadamente para sair dessa condição, depois que foram agredidas por fregueses machistas violentos e afirmam que prefeririam ser professoras, costureiras, advogadas ou cientistas.

Da mesma forma, tem o "ateu de ocasião" que, na sua indiferença religiosa, fica feliz quando vê um suposto "médium espírita" realizar, em sua instituição, um frouxo método educativo, não muito diferente do projeto conservador da Escola Sem Partido, e acha tudo "profundamente transformador" e "revolucionário". Mas se irrita quando sabe que o Método Paulo Freire desperta consciências e ajuda pessoas pobres a obterem, por si mesmas, meios para melhorar a qualidade de vida.

Por trás de tudo isso, está a falta de compreensão das pessoas sobre quem é o Outro. O "outro" é uma espécie de animal que, domesticado, se torna admirado e respeitado, mas, quando deixado em seu "estado cru" e "selvagem", se torna abominável e alvo de preconceitos muito cruéis. É isso que desmascarou muitos intelectuais da cultura que se autoproclamavam "sem preconceitos" ao defender justamente a imbecilização cultural da bregalização.

São esses os preconceitos que deixam as elites confusas e contraditórias, criando posturas falsamente modernas ou arrojadas diante das conveniências. Será que essas pessoas são realmente de esquerda? Será que vários desses indivíduos são ateus? Será que eles não fazem apenas ativismo de sofá, militância de mouse de computador?

E a cultura popular? Acha que a qualidade da cultura está na quantidade de dinheiro investido? E as classes populares, que preconceito não pode haver quando o "generoso" intelectual acha "ativismo" ver pobres rebolando, mas sente um violento horror quando pobres fazem passeata somente para pedir uma passarela sobre uma rodovia que corta uma comunidade popular?

É esse Brasil que permitiu que um governante retrógrado como Michel Temer chegasse ao poder, prometendo uma pauta que só agravará as injustiças sociais. A crise brasileira, na medida em que fez prevalecer a influência de paternalistas de classe média, deixou o povo pobre de lado, ignorando que este poderia agir para superar a crise, e não os ricos que reforçam ainda mais seu egoísmo retrô.

Agora o país está sujeito a um grave prejuízo, diante de setores do empresariado, dos três poderes da República, do Ministério Público, da grande imprensa, que cada vez mais se comprometem com os retrocessos da população, no esforço paranoico de forçar a marcha-a-ré histórica, mesmo que no fim as elites tenham que arcar com os efeitos danosos que causarão à sociedade.

Se contentar com uma falsa cultura popular tramada por empresários do entretenimento e executivos de rádio e TV, ou com uma filantropia de fachada que beneficia pouco mas é exaltada por causa do rótulo religioso que carrega, é simplesmente ficar complacente com as desigualdades sociais e preferir ações como estas que em nada resolvem em relação à emancipação dos humildes e ignorantes.

Neste sentido, a "cultura popular" de mercado, que domina as rádios e TVs "populares", e a "filantropia" das instituições religiosas, que submete a bondade a um sistema de ritos e dogmas igrejeiros, só servem para mascarar as injustiças e servir tão somente para alimentar as vaidades e disfarçar os preconceitos das elites paternalistas envolvidas.

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