sexta-feira, 19 de agosto de 2016
Ad Passiones: a falácia que salvou e protege Chico Xavier
O Brasil não tem o hábito de averiguar as armadilhas do discurso. Se ilude com a aparência e, nos últimos meses, é justamente a supremacia do status quo social que é posta à prova, constantemente, mostrando uma crise sofrida por quem nunca pareceria ser abalado por ela.
Aliás, é uma série de crises. E isso parte de um governo que poderia representar, simbolicamente, os mais elevados conceitos de transparência, objetividade, técnica, imparcialidade e organicidade, o governo de Michel Temer, mas representa o que há de mais abjeto, retrógrado, confuso e corrompido na sociedade brasileira.
Verdadeiras "babilônias" tentam se manter em pé através da manutenção desesperada de suas zonas de conforto. Hierarquias e valores moralistas, mesmo simbolizadas por políticos corruptos e por assassinos machistas ou latifundiários que, mesmo idosos, muitos têm medo de ver morrer, isso num país em que personalidades bem mais importantes, muitas vezes, morrem cedo.
Aquele Brasil da Era Geisel as pessoas não querem ver perder. Era um período considerado feliz para setores ultraconservadores da sociedade brasileira, com uma democracia ao mesmo tempo "garantida" e controlada, dentro de um sistema de hierarquias que deveria ser preservado ou, quando muito, recuperado através da violência.
As pessoas se ofendem quando se diz que esse país já velho e mofado está perecendo. Se ofendem quando seus ídolos e totens podem falecer ou serem desmascarados. vivem em eterna nostalgia ouvindo os mesmos velhos hits setentistas, as mesmas nostalgias doentias. Não é uma saudade saudável, mas uma saudade doentia, de antigos privilégios plutocráticos, patriarcalistas, coronelistas.
No "espiritismo", nota-se a obsessão e o apego em torno do mito de Francisco Cândido Xavier. Um sentimento doentio, que já fez muita gente perder a cabeça com a menor discordância, e faz pessoas que se dizem portadoras de boas energias se inflamarem em agressividade descomunal e arrogância sem limites.
O mito de Chico Xavier é ilustrativo desse velho país que não quer sair de cena, de entulhos sócio-culturais que não podem ser sequer removidos. E que faz os setores sociais entrarem em surto e pedirem a volta forçada aos "velhos tempos" que não voltam mais.
Querem um coronelismo do século XIX. Pensam a mobilidade urbana e o transporte coletivo com os olhos da Curitiba de 1974, ainda com o general Médici no governo. Pensam as relações amorosas dentro dos limites de um machismo que só admite um feminismo limitado e condicionado, com mulheres emancipadas casadas e mulheres-objetos (com as "frutas" e "popozudas" de sempre) liberadas para a solteirice.
Essa "volta ao passado" se dá como se o Brasil se dispusesse de uma máquina do tempo para viajar para os tempos de Emílio Médici, para a República Velha ou mesmo para o Brasil das capitanias hereditárias, ou pudesse manter "vivos" cadáveres de feminicidas mortos como no filme Um Morto Muito Louco (Weekend at Bernie's) e brincando com o WhatsApp indiferente à catástrofe política que é o governo Temer.
Os "espíritas" piram e já definiram como "libertadoras" as passeatas de 13 de março passado, que não foram necessariamente o auge mas, a título de marketing, se anunciou como o ponto culminante dos protestos anti-PT, quando a verdade é que já houve protestos mais animados um ano antes.
É o "espírito do tempo" que tenta a qualquer preço salvar Chico Xavier, quando textos revelam dados sombrios sobre sua ascensão arrivista, a transformação de um beato católico que fazia pastiches literários em "ícone máximo da bondade".
CHICO XAVIER ERA ARRIVISTA
Embora já exista um esforço grande em investigar as irregularidades por ele deixadas, o mito de Chico Xavier tenta desafiar até mesmo a lógica e o bom senso, o que revela um fanatismo doentio de intensidade febril dos seus seguidores. Alguns se escondem num falso discurso de sabedoria e numa falsa sensação de mansidão, mas a verdade é que mesmo isso é feito devido a um mal disfarçado desespero.
E qual a origem de tanta obsessão? Pouco importam, aqui, os malabarismos discursivos que apelam tanto para falsas evocações científicas e filosóficas, e nem na inconcebível possibilidade de enfiar Chico Xavier e companhia numa hipotética recuperação das bases kardecianas, como quem tenta encaixar um cubo num buraco redondo.
O que se observa é que, antes da FEB o transformar num astro pop e antes da Rede Globo fazer de Chico Xavier um "ícone máximo de bondade", ele não passava de um católico oportunista, ávido por prestígio, um poeta mediano que se deu a escrever livros botando na conta dos autores do além, sem no entanto ser fiel aos estilos dos falecidos escritores.
Pensando com objetividade, Chico Xavier causou muita e muita confusão e por isso não merece a reputação de superioridade que recebeu e é mantida postumamente por seus fanáticos seguidores. E isso se dá numa análise imparcial, objetiva, desprovida da habitual complacência religiosa, perigosa no seu apego desesperado a fantasias comoventes, à mancenilheira da emotividade extrema.
Irregularidades da trajetória do "bondoso médium", aqui citadas, das quais se destaca a mais perniciosa e sórdida apropriação de Humberto de Campos, enganando tanto a mãe (Ana de Campos) quanto o filho (Humberto de Campos Filho) do autor maranhense, e a exploração sensacionalista das tragédias familiares, condenadas à ostentação, mostram o quanto Chico Xavier, em vez de ser considerado "puro", deveria ser considerado um dos mais ordinários e oportunistas brasileiros.
APELO À EMOÇÃO
Voltando aos episódios passados, vemos todo o escândalo que causou o livro Parnaso de Além-Túmulo, ao qual se concluiu ser uma coleção de fraudes, com sérios pastiches literários. Sem dificuldade, podemos ver que os nomes de Auta de Souza, Casimiro de Abreu, Augusto dos Anjos e Olavo Bilac ali exibidos não correspondem aos seus respectivos estilos originais e, em muitos casos, estão apenas para representar opiniões pessoais de Chico Xavier.
O mesmo caso se deu com Humberto de Campos, cujo nome ficou associado, na suposta psicografia, a textos pesados, prolixos, moralistas, melancólicos, cheios de vícios de linguagem, que nunca iriam aparecer na obra original do autor maranhense. "O espírito sobe, o talento desce", ironizou o jornalista de Realidade, Léo Gilson Ribeiro, em 1971.
O meio literário reagiu com muita indignação. Mas, por incrível que pareça, com muita razão de sobra. Com muito conhecimento de causa, críticos literários sérios desqualificavam a obra de Chico Xavier apontando irregularidades diversas. Nomes como Osório Borba e João Dornas Filho faziam argumentos consistentes e lógicos.
Houve até mesmo um processo judicial movido pelos familiares de Humberto de Campos, antes do filho homônimo se render ao "canto de sereia" de Chico Xavier. Foi em 1944. Se hoje vemos irregularidades e complacências no meio jurídico, com medo de investigar a corrupção de políticos do PSDB, apesar das provas documentais, o caso Humberto de Campos mostra que nossa Justiça é ainda muito frágil para agir em prol da coerência e da lógica.
O mito de Chico Xavier poderia ter morrido em 1944. Ele, desmascarado, saindo de cena, voltando ao ostracismo, vivendo sua vida de pessoa comum. Mas a FEB, ávida em ganhar dinheiro - o nome Chico Xavier já era garantia de muitas vendas - , sob uma mal disfarçada mas comodamente aceita desculpa de "investir na caridade", decidiu se servir de uma falácia para salvar sua "galinha dos ovos de ouro".
Trata-se da falácia chamada Ad Passiones, palavra em latim que significa "apelo à emoção". Consiste num recurso de convencimento que explora as fraquezas emocionais do interlocutor, pronto a aceitar argumentos pouco consistentes como se fossem "verdades indiscutíveis" só porque atributos diversos são evocados por esse discurso.
Isso vem do filósofo Aristóteles, que disse, no livro Retórica: "O orador convence por meio de seus ouvintes, quando estão despertos para a emoção por seu discurso, porque os julgamentos que oferecem não são os mesmos quando são influenciadas pela alegria ou tristeza, amor ou ódio".
Uma variante do Ad Passiones é o Argumentum Ad Misericordiam, conhecido como "apelo à misericórdia" e "apelo à bondade". Segundo o Guia de Falácias Lógicas de Stephen Downes, o "leitor é instado a concordar com a proposta por causa do estado deplorável do autor".
É justamente isso que salvou e protege o mito de Chico Xavier. Usava-se sua aparência frágil, a princípio de um caipira ingênuo, depois acrescido ao de um idoso doente, o que foi um prato cheio para ninguém ficar fazendo críticas a ele.
O mito de Chico Xavier, na verdade, envolve uma série de procedimentos discursivos e rituais que vão de práticas de ilusionismo circense a manipulação da retórica. E, diante do caso Humberto de Campos, o espertalhão que estava por trás do aparato de caipira inocente foi favorecido pela própria carteirada que fez para a Justiça, naquele 1944.
Primeiro, aproveitou-se a hesitação da Justiça, que, nos padrões da sociedade da época, não entendeu a razão do processo e disse que os problemas de direitos autorais não envolviam obras atribuídas aos espíritos do além. Diante disso, o processo terminou empatado, sem que Chico Xavier e a FEB ganhassem, da mesma forma os herdeiros de Humberto de Campos.
Mas é como um empate que rende pontuação para um dos disputantes. E ainda veio uma mensagem fraudulenta, do suposto Humberto de Campos, mas com um conteúdo que claramente se verifica ter sido escrito a quatro mãos por Antônio Wantuil de Freitas, presidente da FEB, e o próprio Chico Xavier, demonstrando "tristeza" por causa do processo movido pelos herdeiros do autor.
Isso criou um processo arrivista, em que práticas ilusionistas, manipulação discursiva e argumentações contraditórias eram feitos apoiados por um apelo insistente à emotividade. Daí que, recentemente, virou um hábito dizer que "Chico Xavier errou, e muito, mas pelo menos ele foi bondoso".
Isso é uma grande falácia, que também sustenta seus derivados - como o discípulo Divaldo Franco, exímio manipulador da palavra - , e que revela um gravíssimo problema filosófico: a ideia de "bondade" pode estar associada à desonestidade doutrinária e às fraudes literárias?
Esse problema aponta outras questões: mensagens de amor podem legitimar um pastiche literário? Se pode enganar as pessoas em nome do amor? A caridade pode se servir também de práticas desonestas? Vale até mesmo o sensacionalismo para praticar a caridade? Seremos fraternos com a aceitação da mentira e da mistificação? Pode-se tornar espírito de alta elevação espiritual às custas de muitas e graves fraudes?
O que dizer, por exemplo, de Chico Xavier defendendo a ditadura militar na sua época mais violenta? E as ideias dele sobre as desgraças humanas, dentro dos tirânicos conceitos da Teologia do Sofrimento do Catolicismo medieval? E o apoio que ele deu para as fraudes de materialização, sobretudo o espetáculo ilusionista de Otília Diogo, não lhe exime de responsabilidade?
A bondade pode ser irresponsável? Pode ser ilógica e incoerente? A bondade pode ser fraudulenta? A bondade pode eximir alguém de culpa por erros gravíssimos cometidos? A pureza espiritual pode ser garantida mesmo com escândalos gravíssimos, destes de fazer a consciência ficar pesada, se caso faltasse a complacência dos incautos?
São problemas sérios e contradições que os "espíritas" não querem admitir. Eles mesmos parecem não querer assumir responsabilidade para tais problemas. Eles botam a sujeira debaixo do tapete, e são os primeiros que, apesar do discurso "futurista" dos "novos tempos", mais querem que o Brasil se retroceda para os períodos do jesuitismo colonial.
E isso mostra que Chico Xavier sempre se beneficiou pela falácia do "apelo à emoção", sobretudo do "apelo à piedade", para livrar-se da própria responsabilização de seus erros. Só que os piores culpados são aqueles que, errando gravemente, tentam fugir dessa responsabilidade em assumir seus efeitos drásticos. E é isso que faz Chico Xavier, Divaldo Franco e companhia os espíritos mais ordinários que o Brasil conheceu em toda sua História.
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