terça-feira, 13 de outubro de 2015
Brasil e a feudalização das pessoas aculturadas
O que aconteceu com o Brasil? Os retrocessos foram tão profundos que até quem tem alguma inclinação a contestá-lo não o faz e, o que é pior, ainda não gosta quando outros "contestam demais". Estes, a contestar do general de pijamas de 1965 ao troleiro de 2015, passando por toda a "fauna" do entretenimento mediocrizado, são vistos como "chatos", "arredios" e "pessimistas demais".
Nós é que temos que criar uns Anos Dourados e ficar rindo das desgraças alheias. Como no Rio de Janeiro em que fulano se reúne com os amigos para rir dos desastres que acontecem com os outros. Risos irônicos, mas mesmo assim nada confiáveis, porque não se sabe se ele realmente está contestando ou se divertindo com os sofrimentos dos outros.
Questionar as coisas virou uma prática tão discriminada que aquele que tiver coragem de fazê-lo terá que ter algum limite temático. Sempre chega um ponto em que a complacência é recomendável, sob pena do contestador perder amigos, não conseguir ter emprego nem atrair uma namorada.
A mediocridade cultural é um exemplo. Você não pode falar mal de tudo, tem que ter alguma esperança de ver a cultura de verdade renascer tendo algum canastrão a tiracolo. Nem que seja para acreditar que a Bossa Nova renasça com Mr. Catra sentado no banquinho cantando "Chega de Saudade" e Valesca Popozuda "sensualizando" ao cantar "Dindi".
Mas se nada na mediocridade cultural é aceita pelo contestador e isso é aceito socialmente, no entanto ele não pode se expressar por muito tempo. A feudalização da sociedade mais culta e a formação de "maçonarias" culturais faz com que as pessoas deixassem de criticar a mediocridade cultural, formando seus pequenos e fechadíssimos espaços.
As "maçonarias" modernas tanto podem ser webradios quando comunidades no Facebook, adegas isoladas em algum bairro de classe média ou programas de fim de noite em canais comunitários da TV paga. São espaços fechados cujos adeptos ficam felizes porque falam livremente para si mesmos e curtem o que apenas eles conhecem.
É claro que a chamada cultura alternativa têm que ter seus espaços próprios. Só que ultimamente ela foi ao extremo-oposto do que fazia há 25 anos atrás. Se antes os espaços alternativos eram vistos como meros trampolins para o mainstream (o chamado "mundo do sucesso"), hoje eles mais parecem abrigos anti-aéreos diante do intenso e incessante bombardeio da mediocrização cultural.
Só no rock, que era um dos símbolos mais típicos, embora não o único, de cultura alternativa existente no Brasil, o conformismo assusta. Se antes espaços de deturpação cultural do rock como a Rádio Cidade (emissora FM carioca) eram ridicularizados pelos roqueiros autênticos, eles parecem conformados com sua supremacia, mesmo não aderindo a ela.
Ficam felizes com os espaços em que os roqueiros autênticos falam consigo mesmos, enquanto a Rádio Cidade tenta tirar do imaginário reacionário a imagem caricata do "rebelde de bem com a vida" - como é o estereótipo conservador do jovem roqueiro - e inserir na realidade e ditar o que deve ser a "cultura rock" no Rio de Janeiro e, quem sabe, no Brasil.
É até curioso que uma "rádio rock" tenha como locutores profissionais de FM de dance music - a equipe de locutores é exatamente igual a cerca de dois anos atrás, quando a emissora usava a franquia da Jovem Pan FM e tocava pop dançante - , e, para um contexto em que o público aplaudiu um Queen com um cantor pop medíocre nos vocais, tudo acaba parecendo natural.
Uma rádio do "rock de verdade" que quer ser levada a sério mesmo sem ter gente especializada no gênero acaba sendo aceita, porque é a vontade dos que estão "lá em cima" comandando o mercado e prometendo vantagens como ter banda de heavy metal se apresentando todo ano no Citibank Hall, casa de espetáculos da Barra da Tijuca, área nobre no Rio de Janeiro.
Ninguém pode contestar tudo porque está refém da mediocridade cultural. É ela que rende mais dinheiro e a única coisa a fazer é juntar quem pensa igual a você e se reunir nos espaços fechados para falarem entre si sobre o que só eles mesmos acreditam.
Pouco importa a deturpação que acontece a céu aberto nos quatro cantos dos paraísos da alta visibilidade. Se antes ser alternativo é resistir à mediocrização crescente, hoje isso mais parece uma forma de contentamento com os poucos espaços que sobraram.
É como se as pessoas não pudessem mais circular nas ruas, nas praças, nas praias, porque elas viraram redutos de gente caricata e estereotipada, e quem é proibido de circular nesses espaços fica feliz porque tem ao menos um espaço "anti-aéreo" para se isolar e exaltar suas saudades, seus sonhos irrealizáveis, suas esperanças que não vão além de ser simples esperanças.
Passou-se o tempo em que um Edu Lobo aparecia na TV Record, assim como um Geraldo Vandré apavorando o público com belas melodias. Hoje há quem diga que "está bom demais" canastrões como Michael Sullivan, Chitãozinho & Xororó e Alexandre Pires, que nos anos 90 ajudaram a expulsar a MPB das rádios e hoje a usam na tentativa de se mantiverem na carreira.
Pura hipocrisia. Afinal, é ilustrativo o triste exemplo de Chitãozinho & Xororó, que regravam, na forma caricatural do "sertanejo" piegas e postiço que sempre fizeram, o repertório de Tom Jobim eliminando a modernidade artística dele e sem acrescentar sequer o cheiro de mato caipira (que a dupla não acrescenta sequer para suas obras autorais) e achar que a salvação da MPB está através desses ídolos bregas.
Enquanto isso, o novo Edu Lobo, que poderia ser o contraponto de tudo isso, fica feliz da vida se apresentando num programa de fim de noite de um canal político da TV paga, com tão baixa reputação que nem mesmo as "maçonarias culturais" que alegremente se montam hoje em dia tomam pleno conhecimento disso.
"Ah, o programa foi ontem de madrugada? Mas já?", diz a moça, numa dessas resignadas "comunidades culturais" que falam somente entre si e da qual apenas metade soube que o conformado artista apareceu naquele programa do começo da madrugada (já nem é mais fim de noite) tocando sua excelente música para umas duas ou três pessoas.
A MPB autêntica que consegue espaço na grande mídia recebe reclamações dos poucos contestadores corajosos porque ela se perde em intermináveis homenagens. Nada há de novo ou renovador, o que vê é o abuso de tributos que causa um calafrio, porque soam como processos de despedida, não para renovação de um ciclo, mas como uma "bandeira branca" (não se está falando da famosa marcha de carnaval) para a mediocridade brega a invadir as últimas trincheiras que restam da MPB.
Se é um trabalho de um historiador revelando dados ocultos sobre uma armadilha social da pós-modernidade, ele só é conhecido por uma meia-dúzia de cidadãos. Temos um Vladimir Safatle com uma qualidade de conhecimentos a fazer frente a grandes intelectuais europeus, mas ele só é apreciado por um número bem restrito de pessoas.
Enquanto isso, "intelectual de esquerda" acaba sendo gente como Pedro Alexandre Sanches, que nem esquerdista é de fato (nunca foi), um jornalista amestrado pelo Projeto Folha que a centro-direitista Folha de São Paulo fez justamente para eliminar o esquerdismo (em primeira instância isolado no caderno Mais!, que depois foi extinto) e cuja única coisa que fez foi promover o neoliberalismo e a mediocrização cultural como utopias de pretensa revolução cultural no país.
As pessoas que poderiam agir para combater a mediocrização ou mesmo a estupidificação sócio-cultural ficam felizes pelos espaços que restam, dando a impressão de que elas são valorizadas no simulacro de diversidade cultural que temos hoje. Acham que lhes é suficiente os poucos feudos e as raras "maçonarias" culturais e até digitais que são reservados a eles, como consolo da incapacidade de intervirem na realidade a cada vez mais estupidificada no nosso país.
Indiferentes aos efeitos dessa mediocrização, as pessoas aculturadas se consolam em ver mais um concerto de MPB revisitando antigos clássicos. Reclamar dessa humilde situação é ser "chato" e "pessimista demais". Legal é esperar que, nos 60 anos da Bossa Nova, os velhos artistas façam tributos a si mesmos enquanto esperam Valesca Popozuda de vestido colado no corpo inaugurar os "novos tempos" cantando "Dindi" e "Corcovado".
Qualquer problema é só se refugiar em webradios, adegas, comunidades no Facebook e canais comunitários da TV paga para encontrar as poucas pessoas que valorizam a cultura autêntica e ficam felizes em falar para si mesmas, deixando que formas caricaturais e estereotipadas prevaleçam no "céu aberto" do mainstream.
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