quarta-feira, 14 de outubro de 2015
Questionadores sofrem discriminação no Brasil
Pessoas que questionam o estabelecido e vão longe nas suas contestações costumam ser discriminadas. Infelizmente, tornam-se comuns casos de pessoas que são rejeitadas por amigos e boicotadas em atividades porque "questionam demais", e os retrocessos ocorridos no Brasil foram tão profundos que passaram a ter a complacência ou o consentimento de quase toda a sociedade.
Mesmo entre pessoas cultas que, em tese, não se rendem com facilidade às tolices e arbitrariedades que povoam o "estabelecido", a discriminação de contestadores mais aprofundados é muito grande. Quem questiona mais do que três ou quatro problemas cotidianos têm que se preparar para perder amigos e ser boicotado até pelos seus contatos nas mídias sociais.
Infelizmente, é uma tendência constante a complacência. O Brasil vive a tragicomédia de retrocessos tão profundos que as pessoas se acostumaram. Se acostumaram tão mal que acabam rindo das desgraças alheias, refugiadas em suas zonas de conforto que lhes parecem inatingíveis pelas piores tragédias.
Tornou-se uma etiqueta social injusta, mas predominante, o fato de que as pessoas deveriam estar "de bem com a vida", fossem quais fossem os problemas. Não se trata de uma questão de valorizar o senso de humor das pessoas ou ser positivo, embora seja esse o discurso, mas simplesmente criar uma tirania do conformismo, rir dos problemas e achar que nada tem jeito.
A ideia é aceitar apenas as reclamações mais pontuais, de preferência expressas pelas costas da opinião pública e dos centros de decisão. O contestador é bem vindo quando seus comentários se escondem nas mídias sociais e nos fóruns digitais. Mas quando ele se transforma em algum ativismo, os antigos amigos lhe abandonam ou então passam a combatê-lo ou boicotá-lo.
No Rio de Janeiro, tanto o Estado quanto a capital que mais sofreram retrocessos sociais no Brasil, a discriminação se torna mais aguda. Mas esse é um hábito no Sul e Sudeste, em que a "gente bem" que comanda o inconsciente coletivo nas mídias sociais prefere o escapismo ao ativismo, e não vê com bons olhos quando alguém aparece como uma enciclopédia de problemas cotidianos a resolver.
Contestadores do "estabelecido" são vistos como "chatos", "pessimistas", "arredios", "irritantes", "antissociais", "mal-humorados" e outros adjetivos negativos. Enquanto isso, o conformismo cresce a níveis tão extremos que hoje praticamente as pessoas entregam seus ouros a bandidos e desejam boa sorte para eles.
RETROCESSOS LEVARAM O BRASIL A CONTEXTOS PIORES DO QUE NA ERA JANGO
Os retrocessos atingiram o Brasil nos últimos 50 anos. Só para citar aspectos gerais, o poder aquisitivo dos brasileiros decaiu e só precariamente ele começou a ser recuperado nos últimos quinze anos, e mesmo assim de forma limitada e diante de crises. O projeto de país que pensávamos em 1963, progressista e moderno, se perdeu para sempre.
E isso não é necessariamente culpa da tecnologia. A ditadura militar criou um sistema de valores e perspectivas que passou a ser aceito até por pessoas dotadas de algum senso democrático, o que pode trazer surpresas quanto ao reacionarismo enrustido de alguns, como no caso de setores da sociedade que, em 1964, estavam "indignados" com os "excessos" do governo João Goulart.
Não é difícil entender que, ao longo das décadas, houve quem aplaudisse Getúlio Vargas na derrubada da República Velha e depois se opôs a ele. E houve quem o apoiasse mas depois se opusesse ao herdeiro político, João Goulart. Houve quem não se opôs a Jango mas passou a se opor a Lula, Dilma e o PT. E houve quem se opusesse a Jango e passou a apoiar Lula, Dilma e PT.
Hoje o que surpreende são pessoas dotadas de algum senso de modernidade que passam a se tornar reacionárias. Mesmo alguns se mantendo aparentemente progressistas, mostram algum conservadorismo. Ficam com medo quando pessoas questionam "demais", e não sabem o teor dos retrocessos que acontecem.
O Brasil é dominado por visões tecnocráticas e por focos de política autoritária trazidos pelo PMDB do Rio de Janeiro, através de Eduardo Paes, Sérgio Cabral Filho, Luiz Fernando Pezão e sobretudo Eduardo Cunha. E tem reflexos em tudo: cultura, segurança, transportes, habitação e lazer, afetados por paradigmas da ditadura militar que sobreviveram e se adaptaram a pretextos democráticos.
Em muitos casos, voltamos até a situações anteriores a Era Jango, até de forma piorada. Se antes era um problema a Bossa Nova ser vista como substituta do samba (algo firmemente desmentido por seus músicos, que sempre respeitaram o samba dos morros), num contraste entre a Zona Sul e os subúrbios e favelas, hoje o problema está na apropriação do antigo samba dos morros, que o mercado e a mídia usurpou das classes populares, pelo mesmo público elitista de bossas já antigas.
Sim, Martinho da Vila virou patrimônio da moçada rica do Leblon, enquanto Paulinho da Viola virou estrangeiro na própria Madureira em que nasceu e cresceu. Os subúrbios e favelas foram entregues a pastiches de samba impostos pelo mercado e pela mídia, expressos em cada vez mais caricatos e pedantes ídolos do "pagode romântico" que, quando muito, soam como imitações baratas de Zeca Pagodinho, sambista autêntico ainda apreciado pelas classes populares.
Se antes discutíamos a deturpação da cultura brasileira, seja música, teatro, cinema e artes plásticas, pelo formalismo elitista, hoje ninguém discute a avassaladora intromissão da "mão invisível" do mercado (nas palavras do economista Adam Smith), que praticamente mata a MPB, o teatro brasileiro e o que restou do Cinema Novo.
A MPB se perde em eventos saudosistas, em homenagens intermináveis que causam apreensão, porque não há movimentos novos com a mesma relevância artística, o que surge como "novidade" são pessoas preocupadas em adaptar o pop estrangeiro ao que definem ser "o cotidiano urbano brasileiro" e causar polêmicas por nada, sob o rótulo de "provocatividade".
Isso fora o processo de bregalização que, se antes era um segmento menor no comercialismo musical brasileiro, passou a exercer poder paralelo nos anos 70 até exercer hegemonia nos últimos 25 anos e subordinar de vez a música brasileira às rígidas regras mercantilistas do show business. O nosso rico patrimônio cultural virou peça de museu ou artigo de luxo.
O teatro brasileiro voltou ao estágio em que a sofisticação eurocêntrica do Teatro Brasileiro de Comédia expressava supremacia. O contexto atual, de inócuas comédias inspiradas em referenciais e obras estrangeiras, torna-se até mais castrador para temáticas brasileiras do que há 55 anos atrás.
O cinema brasileiro sucumbiu a comédias inspiradas em produções estadunidenses, tão tolas, inócuas e inexpressivas, algo pior do que no tempo das chanchadas que já eram acusadas de pastiches de Hollywood. Como no teatro, o cinema regrediu a contextos inferiores aos de 1960.
E questionar tudo isso, fora outros aspectos - como a domesticação da cultura rock pela emissora carioca Rádio Cidade e o fim de espaços e eventos culturais autênticos - , soa ofensivo para muitas pessoas que, mesmo se considerando cultas, parecem ver a Cultura mais como um subproduto da Economia.
Através dessa perspectiva, muitos acreditam que a "chuva de dinheiro" trará benefícios para o Brasil e melhorará a cultura. Pouco importa se as identidades culturais foram dilapidadas e voltarão apenas como pálidos arremedos nas "linhas de montagens" da chamada cultura de massa. Esperançosas que o consumismo trará cidadania e qualidade de vida, muitos acreditam que dinheiro traz felicidade.
TRAGÉDIAS FUTURAS
E aí o Brasil sofre um quadro trágico. Seus retrocessos acontecem sem controle, com a prevalência "pétrea" das vontades de autoridades, investidores e tecnocratas que desenham o país conforme suas convicções pessoais.
Mas o pior desses retrocessos não é apenas a sua ocorrência, mas a conformação por parte de uma parcela considerável da sociedade brasileira. E, ainda pior, é o preconceito e a discriminação das pessoas para qualquer indivíduo que parece "reclamar demais" das coisas, mas apenas quer chamar a atenção dos múltiplos problemas que poderiam ser resolvidos e combatidos, não fosse o conformismo de muitos.
Muitos acham melhor as pessoas apenas reclamarem do que é "mais manjado" e cederem um pouco, criando zonas de conforto aqui e ali, nem que seja só para reclamar pelas costas enquanto o Brasil decai gradualmente ano após ano.
Daí que rejeitar um questionador por ser "chato" e "insuportável" pode abrir caminho para uma nova catástrofe ou tragédia, a bater nas portas dos conformados. Foi dessa forma que o desprezo aos avisos de Cassandra fez o povo de Troia ser facilmente rendido, morto ou escravizado pelos soldados espartanos que se escondiam no atraente cavalo de madeira.
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