quinta-feira, 23 de março de 2017
Deturpação e roupagem científica
Dois textos - um deles até cita o nosso blogue - mostram o quanto o estranho fenômeno de Francisco Cândido Xavier, a pessoa mais blindada na História do Brasil, é sempre beneficiado por ressalvas aqui e ali. Como deturpador da Doutrina Espírita, no entanto, Chico Xavier não mereceria se tornar ídolo nem ser glorificado ou receber atenuantes aqui e ali do seu currículo deturpador.
Ele personifica os perigos que já haviam sido alertados no século XIX pelo espírito de Erasto, que exigiu maior vigilância quando o espírito ou o "médium" mistificador vier com "coisas boas". Os "espíritas" e simpatizantes da doutrina brasileira fingiram concordar com o grave conselheiro espiritual, mas foram surdos aos seus alertas.
Tudo virou uma construção de discurso de "bondade", que muitos pensam ser um exemplo de realidade iluminada, depositária de sentimentos de otimismo, esperança e progresso. do qual Chico Xavier e, por associação, Divaldo Franco e similares, se tornam seus símbolos. A partir deste discurso, não se permite desqualificação, quando tudo apenas descrição de passagens polêmicas de suas trajetórias.
Um texto publicado na revista Ipotesi, da Universidade Federal de Juiz de Fora, edição de julho a dezembro de 2012, mostra um texto de Alexandre Caroli Rocha, pesquisador de obras "espíritas" e doutor em Teoria e História Literária pela Unicamp, intitulado "Complicações de uma estranha autoria (O que se comentou sobre textos que Chico Xavier atribuiu a Humberto de Campos)".
Caroli tenta parecer neutro nas suas pesquisas. O texto é correto na forma discursiva de uma monografia, além de eficaz no aparato de neutralidade que garante o sono tranquilo da classe acadêmica. No entanto, a polêmica de Caroli se torna incompleta e inócua, por pelo menos dois aspectos:
1) Ele subestima a análise textual como recurso de verificação de veracidade ou fraude. Acha que os problemas das supostas psicografias devem ser considerados apenas se avaliar o fenômeno mediúnico e o processo da vida após a morte.
2) Ele ignora que a polêmica em torno da suposta psicografia de Chico Xavier foi incompleta, porque ficou no maniqueísmo da fraude e da "sobrecarga" de pastiches, desprezando o fato de que as imitações envolvendo vários autores mortos se deram por colaboração de terceiros, já que Chico tinha colaboradores na cúpula da FEB, na equipe editorial da federação e nas orientações de consultores literários.
3) Caroli parece quase taxativo em definir Chico Xavier apenas como "autor empírico" e não como "autor intelectual" dos textos, como se tivesse uma posição discretamente parcial, a favor da atribuição das "psicografias" aos autores espirituais alegados, deixando de lado o aspecto textual e esperando que uma teoria sobre o "além-túmulo" pudesse dar alguma "explicação".
Quanto ao primeiro item, a própria deturpação que atinge o Espiritismo no Brasil impede que sejam estudadas corretamente as questões de vida espiritual e paranormalidade. Cria-se uma mediunidade de faz de conta que só divulga propaganda religiosa em mensagens de valor bastante duvidoso. E se sonha uma vida espiritual através de cidades idealizadas, as "colônias espirituais", das quais não há uma hipótese cientificamente provável.
Evidentemente, a análise textual é um ponto de partida, mas ela é suficiente para apontar indícios de fraudes quando se conhece a biografia e os estilos de personalidade dos mortos em questão. O que também se deve analisar, e isso Caroli não parece se preocupar, é que não são as semelhanças, em si, que atestam veracidade nas obras ditas mediúnicas, mas a ausência de alguma diferença comprometedora.
Outro texto é "Pela Autenticidade de Parnaso de Além-Túmulo - Em Defesa de Chico Xavier", de Jorge Caetano Júnior, que se declara umbandista, tem livro publicado no Clube dos Autores - cada vez mais dominado por publicações religiosas, apesar de seu caráter independente - e se diz "imparcial" e "preocupado com questões técnicas e bases teóricas". Ele cita um texto deste blogue a respeito do Parnaso de Além-Túmulo de Francisco Cândido Xavier.
Ele tenta dar um argumento estranho para contestar nossa constatação de fraude no livro, como se confiasse cegamente em Chico Xavier. Considerando nossa avaliação como "errônea", ele tenta dar seu argumento, mais bondoso com o "médium" do que dotado de qualquer lógica ou bom senso:
"Digo erroneamente, já que, em nenhum momento, o médium assumiu em nome próprio a autoria dos poemas constantes do livro. Fosse mistificação, como poderia ser plágio? Seria um estranho caso de plágio às avessas, onde o plagiador atribui produção própria a terceiros".
Apenas o fato de uma pessoa "nunca assumir em nome próprio" a autoria dos poemas constantes, em si, não é atestado de que as autorias espirituais alegadas sejam verdadeiras. A tese de "plágio às avessas" também é muito estranha e confusa, porque é evidente que o interesse do suposto médium em usar terceiros para levar vantagem sobre uma obra "mais inusitada".
Quanto ao fato de um suposto médium "ter razão" só porque disse que não fez isso ou aquilo que lhe é atribuído mediante provas consistentes, vale lembrar de uma pergunta do espírito Erasto em O Livro dos Médiuns na seguinte questão, no capítulo 20, "Influência Moral dos Médiuns":
"6. Se as qualidades morais do médium afastam os Espíritos imperfeitos, porque um médium dotado de boas qualidades transmite respostas falsas ou grosseiras?
— Conheces todos os segredos da sua alma? Além disso, sem ser vicioso ele pode ser leviano e frívolo. E pode também necessitar de uma lição, para que se mantenha vigilante".
Embora Jorge Caetano também usasse uma roupagem "científica" no seu texto, ele parece bem menos objetivo. E confunde críticas e questionamentos a Chico Xavier com ataques pessoais. Jorge tenta ser "imparcial" e criticar o ufanismo de Brasil, Coração do Mundo, Pátria do Evangelho, mas sonha em ver Parnaso de Além-Túmulo reconhecida como "obra autêntica".
Não se deve querer ou desejar que um livro de pastiches seja autêntico. O livro sofreu vários remendos, o que é inadmissível para um livro que se lança como uma mensagem acabada da espiritualidade. Se a obra fosse mesmo autêntica, teria se encerrado logo na primeira edição, ou, quando muito, tendo havido apenas uma outra edição para acréscimos em vez das correções ocorridas.
O que Jorge esqueceu é que, em maio de 1947, o próprio Chico Xavier "confessou o crime" quando, em carta a Antônio Wantuil de Freitas, agradeceu a ele e a um editor da FEB pela revisão dos textos para a edição definitiva do livro poético, admitindo o "médium" não ter tempo para analisar os "originais". E essa revelação se deu por acidente, trazido por uma adepta de Chico, Suely Caldas Schubert, no livro Testemunhos de Chico Xavier.
Jorge tenta alegar "autenticidade" através de "semelhança impressionante" sobre os diversos poemas publicados. E ele também se fundamenta no mito de que Chico Xavier fazia sozinho os livros quando se percebe que, na FEB, havia uma equipe editorial, e as imitações poéticas eram feitas a várias mãos e sob a consultoria de especialistas literários.
Evidentemente Chico Xavier não imitaria sozinho um número grande de poetas. Mas, em que pese as "semelhanças impressionantes", elas constituem em imitação. Ou alguém aceitaria uma "Auta de Souza" escrevendo com o estilo de Chico Xavier? Ou um Olavo Bilac perdido sem a métrica necessária? Vão dizer que Olavo Bilac ficou tão tomado de amor que se esqueceu do próprio estilo, ou doou o seu talento para a "caridade" e foi expressar a "linguagem universal do amor"?
A semelhança não é indicativo de veracidade. Em muitos poemas, há, mesmo sob semelhanças aparentemente mais fortes, contradições que põem em xeque a veracidade da obra. E, se ele parece impressionado com a "semelhança" entre o poema "Saudades", de Casimiro de Abreu, e "Terra", atribuído ao seu espírito, em que pese o lirismo deste, nota-se que a semelhança é de pastiche, mesmo, até porque não há como ver o estilo pessoal de Casimiro nele. Vejamos:
Trecho do poema “Saudades” de autoria de Casimiro de Abreu:
Nas horas mortas da noite
Como é doce o meditar
Quando as estrelas cintilam
Nas ondas quietas do mar;
Quando a lua majestosa
Surgindo linda e formosa,
Como donzela vaidosa
Nas águas se vai mirar!
Nessas horas de silêncio,
De tristezas e de amor,
Eu gosto de ouvir ao longe,
Cheio de mágoa e de dor,
O sino do campanário
Que fala tão solitário
Com esse som mortuário
Que nos enche de pavor.
Trecho do poema “A Terra” atribuído ao Espírito Casimiro de Abreu:
Se há noite escura na Terra,
Onde rugem tempestades,
Se há tristezas, se há saudades,
Amargura e dissabor,
Também há dias dourados
De sol e de melodias,
Esperanças e alegrias,
Canções de eterno fulgor!
A Terra é um mundo ditoso,
Um paraíso de amores,
Jardim de risos e flores
Rolando no céu azul.
Um hino de força e vida
Palpita em suas entranhas,
Retumba pelas montanhas,
Ecoa de Norte a Sul.
Se botasse o poema "Terra" na autoria de, digamos, Gonçalves Dias ou Castro Alves, também se diria que é "o estilo pessoal de cada um deles". A estrutura poética que Jorge Caetano tanto define como "do estilo de Casimiro" é bastante superficial em temática para se assegurar alguma veracidade.
Há uma frase de Raimundo Magalhães Júnior, conhecido escritor do século XX, a respeito das imitações. E olha que ele foi tido pela FEB como um dos que "atestaram a veracidade mediúnica" de Chico Xavier, estando, a princípio, entre os neutros. Disse ele:
"Quem ler durante 60 dias, noite e dia, dia e noite, apenas Euclides da Cunha, escreverá no estilo de Euclides sem notável esforço, sem fazer uma ginástica mental muito dura."
Infelizmente, os partidários de Chico Xavier se usam até de roupagem científica ou intelectual para defender um "médium" que condenava o pensamento intelectual e o ato de questionar e contestar. Um caipira conservador, deturpador da Doutrina Espírita, e que é blindado como não se podia imaginar nos tempos de Kardec.
É triste que haja polêmicas assim, preocupando com a deificação de Chico Xavier, a ponto de rotular como "ataques" os questionamentos que o cercam. O Brasil é um país provinciano mesmo, preso em paixões religiosas, supostamente espiritualistas mas dotadas de abordagens materialistas. Ignorando coisas importantes como o Controle Universal dos Ensinos dos Espíritos e os alertas de Erasto, as pessoas são "espíritas" substituindo o cérebro pelo coração e pelo umbigo.
Assim, se protege demais um deturpador, e ainda se idealiza a "autenticidade" de um livro que sofreu reparos suspeitos. e ainda teve a revelação do próprio Chico Xavier de que o livro tinha a colaboração dos editores da FEB. Se revelar aspectos estranhos, obtidos à luz da análise, sobre Parnaso de Além-Túmulo, é "fazer ataque", então o problema não é nosso, mas naqueles que sentem medo quando os questionamentos avançam contra dogmas e totens consagrados por muitos.
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