quarta-feira, 7 de dezembro de 2016

'Marketing' da superação nivela "espíritas" aos patrícios romanos


O roteiro é conhecido. Uma pessoa que venceu na vida conta sua história de dramas intensos, humilhações, desgraças, dificuldades acima do limite, impasses difíceis de serem resolvidos. De repente, uma circunstância qualquer lhe garante a superação e a conquista de alguma meta tão arduamente perseguida.

O caso em si nada tem de problemático, se a pessoa teve capacidade para superar tais infortúnios. Mas há um problema quando casos de superação como estes se tornam propaganda e fazem o recreio de moralistas esnobes que parecem vibrar mais com o sacrifício do que com o beneficio conquistado.

Isso cria problemas porque há um sentimento sádico por trás de pessoas que aparentemente se comovem com casos de superação. "Fulano lutou para isso", dizem, sem perceber o êxtase que tem em atingir uma meta através de sacrifícios mais pesados.

É como ser maquiavélico às avessas. Os meios justificam os fins. Não é menos cruel, porque as pessoas acabam pensando mais nos sacrifícios do que nas conquistas, e acabam se comprazendo com desgraças e humilhações. A pessoa é humilhada? Então se esboça um sorriso, pelo sentimento hipócrita de ver a pessoa honrada sendo alvo de humilhação.

Ninguém percebe que as dificuldades extremas não são fáceis de se encarar. Para o moralista, é mole alguém sacrificar demais, "meter a cara", "dar tudo de si". Quanto mais sacrifício, melhor, segundo o moralista. E é irônico que muitos pais chegam a exigir dos filhos sacrifícios para vencer na vida em conversas nos domingos e feriados!

Isso esconde um sentimento sádico que, no caso do "espiritismo", que é mais típico nesse moralismo severo, faz de seus seguidores nivelados aos antigos patrícios romanos, desses que assistem, com prazer, aos gladiadores que enfrentam leões famintos e têm que optar por matá-los com a espada ou serem devorados por eles.

A única diferença é a "luta sem sangue" dos sacrifícios atualmente defendidos. Isso dá uma falsa impressão de não-violência, mas se observa que o moralismo não deixa de ser severo, quando se valoriza mais os sacrifícios do que os benefícios.

Em muitos casos, como é o da atual crise que vive o Brasil - não apenas uma crise econômica, política, institucional ou de segurança, mas generalizada - , o moralismo chega a louvar quem se sacrifica demais por pouco. Vira "lei da selva", os moralistas, no seu conforto no sofá, louvam aqueles que "metem a cara" demais para obter apenas pouco para sua sobrevivência.

Isso é um sentimento geral que até escapa dos "espíritas". E não é um moralismo exclusivamente brasileiro, mas tipicamente dele. E, diante do ultraconservadorismo do "movimento espírita", esse moralismo se torna bem mais acentuado, até pelas caraterísticas da doutrina brasileira.

O "espiritismo" está se nivelando às velhas religiões reprovadas por Jesus de Nazaré. Palestrantes e "médiuns" tomados de estrelismo se equiparam a velhos sacerdotes presunçosos e tomados da coreografia das palavras bonitas e da caridade paliativa que mais encanta as pessoas do que realmente ajuda em definitivo.

Os postulados do "espiritismo" brasileiro estão distantes do pensamento original de Allan Kardec, cujo falso vínculo é arrumado, através do "jeitinho brasileiro", em traduções deturpadas (como os da FEB e IDE), que reduzem o pedagogo francês a um padre, distorcendo seu cientificismo e reduzindo as ideias altruístas do mestre lionês ao cativeiro da fé religiosa.

O "espiritismo" está muito mais próximo dos postulados do antigo Catolicismo jesuíta português, de bases medievais e vinculado à corrente da Teologia do Sofrimento, a que define as desgraças humanas como um "caminho para o céu". A herança medieval é historicamente confirmada com o fato de que o "espiritismo" surgiu no Brasil fundado por dissidências católicas descontentes com as transformações da Igreja Católica propriamente dita.

Imaginamos que, no contexto atual de surtos de barbárie e deterioração moral, depois que forças reacionárias tomaram o poder na República brasileira, o moralismo religioso só critique as atrocidades do nazi-fascismo pela falta de "palavras de amor" e de um suporte moralista mais dócil que poderia motivar os holocaustos que tanto traumatizaram a humanidade.

Depois que Madre Teresa de Calcutá, após ser denunciada por deixar seus assistidos morrerem sob maus tratos - falta de higiene, contágio de doenças graves, seringas reutilizadas, subnutrição e medicação inadequada - e ainda se comprazer com a tragédia alheia, virar uma santa, então pode-se tudo. Pelo moralismo vigente, os tiranos seriam indicados ao Nobel da Paz por suas atrocidades?

O próprio Francisco Cândido Xavier fez um juízo de valor muito severo. Em 1966, acusou os humildes frequentadores e profissionais do Gran Circo Norte-Americano, cuja espetacular apresentação em Niterói de 17 de dezembro de 1961 terminou em um trágico incêndio de causas criminosas, de terem sido em outras vidas gauleses sanguinários (a Gália, atual França, fazia parte do Império Romano).

Chico Xavier cometeu três atrocidades. Primeiro, descumpriu o que ele mesmo pregava: "não julgueis quem quer que fosse". Segundo, seu juízo de valor atingiu pessoas humildes, sem que houvesse prova lógica que eles haviam sido mesmo romanos sanguinários (e seria muito pouco provável que haviam sido). E, terceiro, ainda transferiu a culpa para o espírito de Humberto de Campos, muito mal disfarçado pelo improvisado pseudônimo de Irmão X.

Os "espíritas" é que mais se nivelam a romanos sanguinários. Só que é uma sanguinolência sem sangue, politicamente correta como as repressões militares a estudantes e trabalhadores rurais do Brasil de hoje. Crueldades sempre explicadas com palavras dóceis, sofrimentos e holocaustos defendidos pela coreografia das palavras bonitas.

E ver o Chico Xavier, que pedia a ninguém julgar, fazer um julgamento de valor contra gente humilde é assustador, mas é fato confirmado pelas palavras que ele mesmo escreveu no livro Cartas e Crônicas, que com toda certeza Humberto de Campos nunca teria tido a covardia de escrever, naqueles idos de 1966, quando o Brasil vivia a ditadura militar que o "adorado médium" tanto apoiava, com fervoroso entusiasmo.

Esse julgamento de valor é muita atrocidade para um sujeito que é oficialmente considerado como "espírito puro", mas que, com a máxima certeza, viu suas ilusões serem destruídas quando retornou ao mundo espiritual, quando o pastichador e plagiador de livros, moralista severo, religioso retrógrado e medieval e usurpador de mortos voltou à tona, arrancando a máscara confortável do pretenso filantropo de fala mole e revestido do aparato do caipira doentio e frágil.

O próprio Chico Xavier já cometeu crueldade quando falava que o sofredor não deveria mostrar sofrimento e fingir aos outros que estava tudo bem. O próprio Chico Xavier manifestava seu ódio a quem reclamava da vida, insensível às dores que os queixosos vivem. Isso é uma perversidade sem tamanho, e acobertar essa piedade pelo mito do ídolo religioso associado a uma falsa ideia de "bondade" (reduzida a um subproduto da religião) explica o caráter retrógrado do "espiritismo".

E é isso que se vê no Brasil de hoje. Um moralismo severo, cruel mas seletivo. A recuperação de velhos preconceitos machistas, raciais, elitistas, moralistas, tecnocráticos, acadêmicos, profissionais, de tudo. Um surto obscurantista voltou ao Brasil como uma nuvem castanha cobrindo uma cidade inteira. A volta das trevas permite esse moralismo de pessoas que, diante da superação alheia, valorizam mais a desgraça do que os meios usados para superá-la.

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