segunda-feira, 26 de setembro de 2016
A sordidez do moralismo religioso
Com a efetivação do retrógrado governo de Michel Temer e a consagração de um factoide como um suposto "segundo milagre" para a canonização de Madre Teresa de Calcutá, o "espírito do tempo" do moralismo religioso revela seu lado de sordidez e hipocrisia.
Denúncias de que Madre Teresa teria sido cruel com os "assistidos", tão cruel que não deixava sequer médicos trabalharem em suas casas nem familiares buscarem seus parentes para levá-los a hospitais, derrubam a "inabalável" ideia de que a freira albanesa é a "caridade personificada", sendo usada até como paradigma de generosidade, filantropia ou humildade.
A sordidez do moralismo religioso, que aprisiona o sentido de bondade submetendo-o ao rótulo religioso, permite tanto que governos "laicos" - mas também apoiados por várias seitas religiosas, como o neopentecostalismo e o "movimento espírita" - como o de Michel Temer se consagrem com uma pauta bastante amarga para o povo brasileiro.
Uma pauta que inclui o prolongamento da aposentadoria, num país em que a meia-idade e a velhice mais precisam do lazer, e não do trabalho, para repensar a vida. Ou então que exigirá do trabalhador maior carga horária, enquanto cancela encargos e garantias sociais. Além de receber menos, o trabalhador ainda perderá o direito ao atendimento na saúde pública, pagando planos de saúde privada cujas tarifas caras servem mais para abastecer o luxo dos médicos de nome.
Sofrer é bom? Para a religião, parece que é. E nada como o "espiritismo", religião que, até mais que a própria Igreja Católica, recicla valores do Catolicismo medieval português - difundido pelo movimento jesuíta no período colonial, lembrando que padres, freiras e sorores jesuítas são "mentores" de muitos "centros espíritas" - , para revelar seu vínculo com a Teologia do Sofrimento.
O palestrante religioso chega, em primeira instância, dizer que o sofrimento serve para "reajustes espirituais", jargão que corresponde à expressão católica "purificação dos pecados", e, em seu discurso supostamente racional, o mensageiro de ocasião apela para o sofredor "não reclamar da vida" porque é "na pior das desgraças que a bênção de Deus se instala na alma do sofredor".
Pura hipocrisia. Esse discurso é tão hipócrita que, em primeiro momento, o ideólogo "espírita" é austero e taxativo em seu julgamento de valor. Ele diz que "o sofrimento (por si só) dignifica" - quando o que realmente dignifica é o esforço do sofredor para superar uma desgraça - e diz que a pessoa tem que aceitar o sofrimento, abandonar suas "paixões" e se convencer que o "pior inimigo" do sofredor é ele mesmo.
Isso evidentemente pega muito mal. A apologia do sofrimento, em primeira instância, revela o julgamento moralista severo do "espírita", que se gaba em ser o "dono da verdade" e o possuidor da "palavra final", mas que é criticado por ignorar que as pessoas têm suas necessidades individuais e que a individualidade não é sinônimo de materialismo nem frescura.
Evidentemente, diante das críticas, o "espírita" que se acha (sem assumir, todavia, no discurso) "possuidor da verdade", no entanto, tenta mudar o seu discurso. Ele tenta argumentar que "ninguém veio para sofrer" e o que o sofredor vive são "provas" que são "necessárias para sua superação".
O "espírita" que ficou severo demais no primeiro momento tenta ceder no segundo. Isso já lhe tira o mérito da "palavra final", embora ele sempre insista no seu exército de palavras "bonitas" para tentar vencer a batalha retórica, sob a desculpa de que o referido palestrante, por falar palavras-chave como "amor" e "fraternidade" e, em tese, estar no lado de Jesus e Deus, pode sim, "estar" com a verdade.
E o que ele tenta dizer mais? Ele tenta enrolar dizendo que o sofredor deveria "conhecer novas habilidades", ter "autoconhecimento", "confiar em Deus" e "buscar novas soluções". Quanto a esta última sugestão, isso até é óbvio, porque é sempre do instinto de alguém sofrer buscar uma solução de superação. Outra pessoa aconselhar essa tarefa, além de não acrescentar coisa alguma, chega a ser até chato de se ouvir. Não se aconselha algo que já está sendo feito.
Há uma sordidez nesse moralismo, porque os religiosos, que acham que "conhecem a verdade" e "estabelecem contato com o oculto", não compreendem a complexidade da vida humana. Não sabem que indivíduos têm necessidades diferentes e elas não podem ser vistas como meros caprichos materialistas ou paixões mundanas.
O que há de mais sádico é que os "espíritas" acham que, por existir a vida espiritual e por haver várias encarnações, se pode aceitar que uma encarnação de cerca de 80 anos seja desperdiçada em desgraças e numa degradação da vida em que o indivíduo não molda suas vontades e desejos, mas simplesmente os anula, já que as desgraças são tantas e os esforços para superá-las, inúteis, que o sofredor se reduz a ser um mero brinquedo das circunstâncias adversas.
Isso é muito sórdido. E, se percebermos que o "espiritismo" admira Madre Teresa de Calcutá quase como um ícone da doutrina, faz sentido que a doutrina que se diz kardecista mas nada tem a ver com Allan Kardec seja uma "fábrica de sofredores", transmitindo energias pesadas naqueles que seguem com devoção tal doutrina brasileira.
A religião acaba sendo a fortuna simbólica dos aristocratas da fé e é isso que muitos não conseguem entender quando Jesus de Nazaré fazia duras críticas aos sacerdotes do seu tempo, por práticas extravagantes, preceitos e valores que, ironicamente, são feitos justamente por aqueles que seguem o antigo ativista. Os hipócritas de hoje evitam serem comparados aos hipócritas do passado, bajulando aquele que justamente condena a hipocrisia, independente de que época e pessoa vier.
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