O Brasil vive uma crise que vai além da economia. É uma crise de valores. Uma crise não sentida pela própria "boa sociedade" que permanece nas suas zonas-de-conforto. Há um apego a um modelo de país sonhado nos tempos do general Emílio Médici, ou, na melhor das hipóteses, no do general Ernesto Geisel.
As soluções e paradigmas são ainda os de 40 anos atrás. A corrupção dissimulada, o pragmatismo (ou seja, preferir as medidas e valores que atendem apenas ao mais básico dos básicos), a fuga dupla da religiosidade extrema e da permissividade brega, o Brasil que aprecia a "cultura popular" que explora o ridículo é o mesmo que exige rigor extremo para outras coisas.
O país tornou-se difícil para pessoas diferenciadas viverem. Uma considerável parcela de personalidades e artistas que conseguem contribuir com coisas elevadas de diversos tipos tende a morrer mais cedo ou, pelo menos, no auge de sua produtividade, deixando lacunas irreparáveis para o Brasil.
E olha que essas pessoas vieram de outros tempos, em que se permitia uma ascensão social. Hoje, época de mediocridade extrema, as pessoas com um mínimo de diferenciação têm dificuldade para se ascenderem e precisam ter um pacto com a mediocridade para subir alguns degraus da pirâmide social.
É o caso de pessoas progressistas que precisam obter visibilidade na mídia reacionária. Ou de pessoas emergentes que precisam ter patrões medíocres e corruptos para terem algum espaço no mercado de trabalho. Para vencer na vida, muitos apelam para os próprios algozes ou canastrões para terem algum "lugar" na sociedade.
A vida no Brasil impõe obstáculos difíceis para quem não "segue o rebanho". Ideologicamente, o Brasil, por não abrir mão de antigos entulhos ideológicos e apreciar valores novos sob o filtro de antigos paradigmas, impede seu próprio desenvolvimento, porque não consegue acolher novas ideias, novas práticas e novos personagens sem romper com o que há de antiquado e retrógrado, o que não deve ser confundido com velhas e boas tradições, muito mais progressistas que certas "novidades" que pintam por aí.
Afinal, tínhamos momentos em que propostas, práticas e pessoas mais progressistas e modernas tinham mais espaço. Foi no começo da década de 1960, quando, ainda no governo de Juscelino Kubitschek, se debatia desde os rumos da cultura brasileira até métodos de combater o analfabetismo adulto. A televisão tinha uma programação bem mais inteligente, da qual pouco se restou de arquivos. A música brasileira, em 1960, permitia que artistas de grande talento fizessem sucesso nas rádios.
Hoje, no entanto, a mediocridade atinge graus extremos. Valores retrógrados crescem feito bola de neve de tal forma que se adquire até uma moral estranha, em que a sociedade passa a sentir a "síndrome de Estocolmo" até por feminicidas conjugais, que exterminavam esposas e namoradas em nome da tal "defesa da honra masculina" e por isso saíram impunes.
Já surgem rumores de que alguns feminicidas mais velhos (na virada dos 70 para os 80), e alguns nem tanto (na casa dos 40 aos 60), que viraram notícia no país, estão sofrendo doenças graves, e a sociedade moralista, em vez de se preparar para o inevitável ("também morre quem atira", como diz a canção de O Rappa), reage com revolta dizendo que tais rumores são "ofensivos" e "preconceituosos" contra quem "precisa viver em paz".
É esse dado surreal, que faria o franco-atirador do filme O Fantasma da Liberdade (de Luís Buñuel) babar de inveja, que mostra o grau de moralismo vesgo que prevalece no Brasil, em que se fala num "feminismo" de glúteos, em que determinadas mulheres-objeto que fazem sucesso na "cultura popular" - não fazem outra coisa a não ser "sensualizar" e "mostrar demais" - se autoproclamam "feministas" porque não têm namorados ou maridos.
Há manifestações de racismo e machismo que explodem nas mídias sociais. Há sutis apologias ao racismo e ao machismo em ritmos "populares" como o "pagodão" da Bahia e o "funk carioca". Há músicas "sertanejas" que defendem abertamente a embriaguez e não medem escrúpulos para exaltar também os carrões, sendo uma propaganda subliminar a favor da trágica combinação entre álcool e volante, num gênero que, ironicamente, teve um ídolo emergente, Cristiano Araújo, morto em um acidente de carro junto com a namorada.
Temos um dos piores sistemas de comunicação do país, cujas empresas se ascenderam durante a ditadura militar ou cujos veículos cresceram através do clientelismo político do governo José Sarney. É uma mídia ideologicamente fechada, que influencia um mercado cinematográfico castrador e inspira uma intelectualidade (jornalistas culturais, cineastas e cientistas sociais) que defende a degradação cultural do país porque acha ótimo o povo pobre fazer papel de ridículo.
É um quadro bastante estarrecedor, e que é responsável pela estupidez em doses surreais que atinge o país, em que uma gíria fabricada pela grande mídia, "balada", tenta se espalhar como se não fosse gíria e nem se voltasse a um público específico (como deveria ser uma gíria, expressão linguística de um grupo social).
A coisa é tão preocupante quando comparada aos EUA, já que as corporações de mídia lá existentes, com toda a voracidade comercial que possuem, capaz de ceifar seriados de TV de conteúdo excelente só porque tiveram baixa audiência, permitem que se critiquem certos fenômenos sociais. Reality shows, sensacionalismo jornalístico, fanatismo religioso, esses temas conseguem aparecer até nos mais comerciais filmes do cinema de Hollywood.
No Brasil, é o inverso. Nem o chamado cinema independente se encoraja a romper a camisa-de-força ideológica, contestando totens religiosos, midiáticos, políticos. A política de patrocínios mais parece uma operação de sequestro, em que o produtor cinematográfico é refém de um status quo que não permite contestar certos valores e personalidades.
Nos EUA, se contestava até o esquema de jabaculê que girava em torno da soul music, um estilo musical considerado um dos mais apreciados no mundo. Mesmo a Motown, principal gravadora do gênero, era acusada de tais práticas, num país em que o padrinho do rock'n'roll, o radialista Alan Freed, entrou em decadência com o chamado "escândalo da payola" ('payola' é o que se conhece por "jabaculê" nos EUA).
Aqui, experimente alguém fazer um documentário ou um livro sobre os esquemas de jabaculê do "funk carioca", ritmo que nasceu comercial depois que, em 1990, rompeu com qualquer influência do funk autêntico de James Brown e derivados. Ninguém vai patrocinar, ninguém vai publicar. Soa "discriminatório".
Há um medo de fazer o estabelecido ruir. Há um medo de se derrubarem totens e valores pré-estabelecidos, por mais injustos que fossem. E isso influi num mercado de trabalho e num meio acadêmico que simplesmente boicotam quem tem talento diferenciado.
Os meios acadêmicos boicotam pessoas do nível intelectual de um Noam Chomsky e Christopher Hitchens. Eles não chegam sequer a ser alunos-ouvintes de mestrado. Houve denúncias de que uma universidade pública, vendo que, na lista de 30 vagas para alunos-ouvintes, havia alguém "muito contestador" das coisas, decidiu fechar a turma com 29 e deixar o candidato de fora.
Fenômenos aberrantes de degradação sócio-cultural e deslumbramento religioso chegam a ser corroborados por acadêmicos tidos como "sérios". O "funk" trata o povo pobre de maneira pejorativa e os acadêmicos defendem o ritmo degradante. E, no exterior, um mito religioso mais verossímil, como Madre Teresa de Calcutá, foi bem mais fácil de ser derrubado do que Francisco Cândido Xavier, o Chico Xavier de seus seguidores.
Um Christopher Hitchens brasileiro mal consegue passar por um Bacharelado e conseguir uma pálida visibilidade em um blogue de Internet. Não pode fazer monografias nem documentários, não pode influenciar a opinião pública revelando fraudes e irregularidades diversas.
As pessoas diferenciadas só ganham espaço no mercado de trabalho quando patrões medíocres precisam de uma forma ou de outra se autopromoverem às custas do talento refinado de alguém. E isso é terrível, porque nem por esta oportunidade a pessoa talentosa encontra grande chance de crescimento, se tornando apenas veículo para a vaidade pessoal do patrão pretensioso.
Assim o Brasil não resolve seus problemas de incompetência, intolerância social, intransigência cultural e outros vícios. É um país viciado, que pensa as soluções para seus problemas com fórmulas de 40 anos atrás (isso quando o fanatismo religioso não apela para receitas que só faziam sentido dois milênios atrás). E tudo isso acaba travando o progresso e deixando o país no marasmo de sempre.
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