terça-feira, 8 de setembro de 2015

Pobres e jovens domesticados


O que o "funk carioca" tem em comum com o chamado "pop rock"? O que Valesca Popozuda tem a ver com CPM 22? Que relação têm DJ Marlboro e Raimundos? E o que a Top Rio FM tem a ver com a Rádio Cidade? Tudo, e muito mais relações do que se pode pensar.

Curiosamente, a Rádio Cidade já teve seus "profissionais de rock" migrando para a Beat 98 FM, rádio popularesca que enfatizava o "funk". E, por outro lado, um radialista popularesco da Beat 98 foi virar coordenador da programação "roqueira" da Rádio Cidade (famosa por ter gente NÃO-ESPECIALIZADA em rock). E a Top Rio FM surge para ocupar o nicho da hoje extinta Beat 98, pouco depois da Rádio Cidade lançar novo logotipo e falar em "rock de verdade" (sic).

E essa relação entre "funk" e "rock" esconde uma manipulação ideológica muito sinistra. Afinal, são dois movimentos ideológicos em que o potencial de mobilização social de pobres e jovens é neutralizado por projetos de domesticação que poucas pessoas conseguem perceber.

O "funk", durante anos, foi respaldado por um esquema que incluiu executivos da grande mídia conservadora, grandes empresários patrocinadores de eventos suburbanos - incluindo redes de supermercados e lojas de materiais de construção - e um processo traiçoeiro de degradação sócio-cultural das classes pobres, expresso num sutil processo de desmobilização e consumismo.

Criava-se um discurso cheio de contradições, difundido de forma maciça e insistente por jornalistas culturais, repórteres em geral, antropólogos, sociólogos e ativistas,
bolavam uma imagem ideológica do "funk" como um falso ativismo social.

A ideia era usar um termo popularizado pela luta contra o apartheid sul-africano, o "combate ao preconceito", para forçar a opinião pública a aceitar o "funk", e até documentários e monografias acadêmicas eram feitos para forçar essa imagem ideológica.

O discurso ideológico tentava atribuir ao "funk" todo tipo de vanguarda cultural, social e comportamental, associando a ele entidades ativistas, movimentos feministas e organizações não-governamentais, com o esforço de fazer o simulacro de vanguarda sócio-cultural parecer verossímil.

Por baixo dos panos, o discurso ideológico em favor do "funk" teve como objetivo promover uma imagem caricatural das classes populares, com um objetivo contrário ao que sugere o simulacro de ativismo e vanguarda forjados para o estilo.

Assim, o "funk" estabelecia a glamourização da ignorância, da violência, do machismo e da pedofilia, enquanto trabalhava um discurso que mascarava tudo isso. O machismo das "musas" do "funk", por exemplo, que trabalha a imagem da "mulher-objeto", era dissimulada num discurso que evocava valores falsamente feministas. A pedofilia que envolvia garotas menores de idade era defendida como "forma de iniciação sexual das mulheres das periferias".

Em muitos momentos, o discurso de defesa do "funk" caía em contradições, como no que diz respeito ao "proibidão", facção do "funk" que defende abertamente a violência. Uns dizem que essa tendência "deprecia" a imagem social do ritmo, outros afirmam que é uma "forma realista" de "denunciar os problemas das periferias".

Por trás dessa "fábrica" de polêmicas e escândalos, respaldado pelo verniz de "vanguarda cultural" e "ativismo social" trabalhado pelo meio acadêmico e pela grande mídia, o "funk carioca" trabalhava sua única fidelidade, de impulsionar jovens pobres para o consumismo, pagando ingressos e comprando produtos associados à estética funqueira.

O consumismo
reduz os impulsos de rebeldia apenas a aspectos simbólicos que eliminam a mobilização social, já que se torna apenas uma expressão consumista de valores simbólicos, de gestos, roupas e posturas que se tornam inócuos e por isso não comprometem as estruturas sociais responsáveis pela desigualdade que se vê hoje.

Há também o mito do "orgulho de ser pobre" que "fixa" as populações pobres nas favelas, áreas na verdade degradadas e cuja origem se deu pela exclusão imobiliária e pela expulsão de moradores de antigos bairros populares. Criou-se um ufanismo das favelas que ocultava os problemas que seus moradores passam, principalmente pela estrutura desorganizada de seus acessos e casas e outros transtornos, muitos deles graves.

O discurso "em prol das periferias" do "funk" procurava o máximo de autenticidade possível, seja pela "militância" de um MC Leonardo, seja pelo "feminismo autêntico" de Valesca Popozuda, seja pela "genialidade" de DJ Marlboro, entre outros. É o falso tentando ser mais verdadeiro que a verdade.

Se no "funk" a rebeldia do povo pobre, em vez da natural inclinação para o ativismo (descontando os exageros de indivíduos ou grupos violentos, que são outros casos), há apenas o estímulo ao consumismo do entretenimento e do mercado, no rock estereotipado da mídia a coisa não é diferente.

No rock trabalhado pela Rádio Cidade, que aborda estereótipos conhecidos por novelas e comerciais de TV e mesmo pela imagem caricatural trazida por eventos como o Rock In Rio - a ocorrer daqui a alguns dias - , a rebeldia do jovem de classe média é neutralizada pelo impulso consumista e por um padrão de comportamento marcado pelo niilismo conformista, uma espécie de revolta resignada como se adaptasse a "teologia do sofrimento" de Chico Xavier ao estereótipo roqueiro.

A juventude "roqueira" trabalhada por esse perfil ideológico se limita a usar gestos - como fazer o sinal do demônio com as mãos e botar a língua para fora, além de pular ou fazer air guitar diante de apresentações de rock - e adota posturas completamente estranhas para a rebeldia associada ao rock autêntico.

Alguns exemplos: a conformação fácil com os problemas, apesar de ter consciência deles, assim como a aceitação passiva em ouvir apenas os "grandes sucessos" das bandas, contrariando a chamada "garimpagem" que faz os roqueiros autênticos procurarem por faixas mais raras ou canções que não fazem sucesso nas paradas.

A exemplo do público do "funk", há todo o discurso que procura se aproximar da autenticidade no "rock de mercado". Até mesmo campanhas "sociais" inócuas, como a aparente defesa de causas ambientais ou de cidadania (sem trocadilho com a rádio), através de eventos tão postiços quanto o "McLanche Feliz", como se observa nas filantropias "espíritas" que "ajudam" sem "atrapalhar" as estruturas dominantes.

Afinal, muitos dos patrocinadores de eventos de rock que são parceiros da Rádio Cidade - emissora que está muito mais próxima a de um sub-escritório da Artplan do que de uma emissora realmente de rock - são grandes corporações que cobram caro por produtos e serviços e, em certos casos, exploram de forma desumana a mão-de-obra, e consentir com seu poder vai contra a rebeldia própria da juventude roqueira.

Com o "funk" e o "rock de mercado", o Rio de Janeiro mostra seus retrocessos sociais, na medida em que trabalha imagens estereotipadas de jovens rebeldes para permitir que se levem adiante projetos de vida social e cultural que só servem ao mercado turístico, à economia do entretenimento e ao lucro dos políticos, tecnocratas e empresários envolvidos, em detrimento do interesse público e das necessidades naturais do povo, que são deturpados e lesados.

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