domingo, 14 de setembro de 2014
Por que Allan Kardec tornou-se desprezível para os primeiros "espíritas" brasileiros?
O que fez as ideias científicas de Allan Kardec terem sido desprezadas nos primórdios do "movimento espírita" brasileiro, pelo menos da parte da facção majoritária dos religiosistas? A "adaptação" da novidade espírita, tida como "inocente" e "peculiar" às tradições brasileiras, no entanto não se explica sem levarmos em conta aspectos nada harmoniosos.
O Brasil é um país complicado, que tem como seu principal vício o estabelecimento de novidades sem romper com velhos paradigmas. É como se construíssemos um novo edifício a partir de pilastras da construção mais antiga. Pilastras velhas e apodrecidas a sustentar um novo edifício. E isso explica muitas coisas, e nelas inclui o modo como o Espiritismo foi adotado aqui.
O contexto social das raízes do "movimento espírita" é o período final do Segundo Império, o desgaste do poder escravocrata e os efeitos sociais da Guerra do Paraguai, em que um grande contingente de homens brasileiros, inclusive jagunços, mendigos e até loucos, foram jogados para lutar, sob as ordens do império britânico, contra a ascensão populista do presidente paraguaio Francisco Solano Lopez.
Esse período tornou-se um marco histórico para o Brasil, que ainda vivia um desenvolvimento sócio-político incipiente. As primeiras faculdades, berços do ensino universitário, só surgiram depois da vinda da família imperial ao Brasil, em 1808.
O Brasil tornou-se independente de Portugal mas ainda sofria forte influência portuguesa, que influiu na permanência da opção imperial, com herdeiros da família monárquica lusitana, numa América do Sul de países republicanos, seguindo o exemplo dos já republicanos Estados Unidos da América.
Além disso, o trabalho escravo ainda era uma forte atividade econômica, embora considerada na Europa uma atividade decadente. Ainda na década de 20 do século XIX, o estadista José Bonifácio de Andrada e Silva havia defendido a abolição da escravatura, mas isso era inútil porque a maioria dos fazendeiros, empresários e intelectuais de então era a favor dessa atividade.
Até a parcial assimilação dos ideais do Iluminismo francês se deu dentro da perspectiva de "edifício novo sobre andaimes velhos". Assim, os ideais de direitos humanos chegavam aqui limitados, para não afetar os interesses das elites escravistas no país. Vide o caso, no final do século XVIII, da Conjuração Mineira, também conhecida como Inconfidência, que incluiu ativistas escravocratas.
Sempre uma coisa nova chega ao Brasil distorcida, para que não represente uma transformação radical. É um elemento novo que precisa ser adaptado não ao sabor das "peculiaridades regionais", mas antes deturpado ao sabor de interesses conservadores que aceitam o dado novo desde que bastante lapidado e mesclado com caraterísticas bastante conservadoras.
A partir do meio do século XIX, se intensificaram as pressões externas e internas para tentar extinguir, ou ao menos enfraquecer, a exploração do trabalho escravo no Brasil. Diversos parlamentares e jornalistas, alguns deles negros já emancipados, foram militar na causa abolicionista.
No contexto histórico e político, a atuação do parlamentar Adolfo Bezerra de Menezes, médico que depois virou líder "espírita", foi razoável, escrevendo até um livro, A Escravidão no Brasil e as Medidas que Convém Tomá-la para Extingui-la Sem Dano para a Nação, lançado em 1869, que apresenta visões válidas sobre como superar a economia escravagista.
O trabalho escravista só foi extinto em 1888, mas mesmo assim sem representar uma digna compensação tanto para os senhores quanto para os negros libertos. Os negros foram deixados à própria sorte, em condições sociais que, entre outras coisas, gerou a favelização.
Já as elites exploradoras, sobretudo dos antigos senhores de engenho, se revoltaram com a Abolição e passaram a pressionar pelo enfraquecimento do poder do imperador Dom Pedro II e pela instauração da República, a partir de um golpe militar comandado por um monarquista (!), o marechal Deodoro da Fonseca. Edifício novo sobre andaimes velhos.
Um Brasil que muito tardia e confusamente mudava da Monarquia para a República - e, mesmo assim, com um altamente corrupto processo eleitoral - , que chegou a ter um Iluminismo com ideias escravocratas, e se dividia entre o velho populismo imperial e o velho coronelismo republicano, tinha que assimilar o Espiritismo da forma mais contida possível, praticamente castrada.
Sim, porque as ideias de Allan Kardec foram praticamente castradas. Apenas algumas novidades formais foram consideradas, como a existência de vida espiritual após a morte e alguns procedimentos de cura fluídica.
Admitia-se, também, uma redução do rigor punitivo do Catolicismo medieval, mas sem sair de sua essência moralista e extremamente mística. Dessa maneira, influências religiosas diversas, como dos cultos africanos e indígenas, eram respeitadas pelo "movimento espírita" de ideias ainda católicas, do contrário da intolerância antigamente feita pelos medievais.
Isso não impede, porém, que o medievalismo católico tenha sido descartado em sua essência. Já não se condenava hereges para serem queimados em praça pública, mas ainda se adotava um moralismo para o qual suicidas eram mais duramente atacados do que os homicidas, vistos pela moral espiritólica brasileira como "justiceiros das leis de Causa e Efeito".
A influência do Catolicismo medieval, que ainda prevalecia em Portugal - a título de exemplo, o dramaturgo e ator Antônio José da Silva, conhecido como "o Judeu", nascido no Brasil mas fazendo carreira em Portugal, havia sido condenado pela Inquisição em 1739 - , e encontraria ecos no Brasil ainda no século XIX, freou muito do impacto das ideias de Kardec no país.
Na própria França as ideias kardecianas eram deixadas de lado, já que mesmo seus aliados queriam atenuar o conteúdo científico em prol de ideias católicas defendidas pelo governo francês de então. Durante muito tempo os delírios católicos de Jean-Baptiste Roustaing foram considerados "mais modernos" e "assimiláveis" do que as ideias científicas de Allan Kardec.
E foi Roustaing quem primeiro fez baterem os corações dos pioneiros da FEB. Hoje a própria federação tenta ocultar esse aspecto, criando uma visão oficial e "limpa" da Doutrina Espírita, costurando a trajetória kardeciana sem as intervenções roustanguistas com a trajetória da FEB sem as polêmicas do grupo científico.
Essas manobras é que encontram sua justificativa não na admirável tradição dos povos brasileiros, mas na lamentável tradição dos interesses das elites conservadoras, que sempre puxam para trás e que criaram o hábito, válido até hoje, do Brasil só admitir novidades quando elas são adaptadas e domesticadas para atender a interesses conservadores dominantes.
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