sábado, 13 de setembro de 2014
Historiadora faz análise superficial e oficialesca sobre a Doutrina Espírita
A conceituada e experiente historiadora e professora da USP e da PUC/RJ, Mary Del Priore, é conhecida por muitos trabalhos de valor como Uma Breve História do Brasil, História das Mulheres do Brasil, A Viagem Proibida: Nas Trilhas do Ouro e Matar Para Não Morrer (este sobre Dilermando de Assis, o assassino do escritor Euclides da Cunha, autor de Os Sertões).
No entanto, sua incursão nos assuntos da espiritualidade, ou melhor, do sobrenatural, através do livro Do Outro Lado - A História do Sobrenatural e do Espiritismo, embora bastante bem intencionada, peca pela superficialidade e por uma posição parcial, vinculada às fontes referentes à visão da Federação "Espírita" Brasileira.
O trabalho não é exclusivamente sobre a Doutrina Espírita, mas sobre a questão das relações dos brasileiros com o sobrenatural, incluindo umbanda, cartomancia e curandeirismo. Ela faz até um histórico interessante sobre os processos e movimentos referentes a esses temas, mas quando descreve o Espiritismo no Brasil a autora cai em equívocos.
Mary se limita a descrever uma visão superficial e oficialesca da Doutrina Espírita, considerando tão somente o ponto de vista dos dirigentes da FEB. Ela descreve uma trajetória "higienizada" da Doutrina Espírita no Brasil, em que o único confronto existente é entre o "movimento espírita" e a Igreja Católica, praticamente num maniqueísmo a favorecer os "espíritas".
A historiadora prefere evitar as polêmicas graves ocorridas no interior do "movimento espírita" e os dois extremos problemáticos que comprometeram a trajetória da Doutrina Espírita no Brasil, sejam as raízes das deturpações "catolicizantes", sejam os líderes espíritas que reivindicavam maior fidelidade às ideias científicas de Allan Kardec.
Em outras palavras, Mary Del Priore conta um histórico "limpo" do Espiritismo, eliminando as intervenções místicas e católicas de Jean-Baptiste Roustaing, fonte para o "espiritismo" defendido pela FEB, de um lado, e as reações de espíritas científicos como Afonso Torterolli contra as traições da FEB às ideias originais de Kardec.
Em vez disso, Mary Del Priore prefere uma narrativa "asséptica", em que a doutrina de Allan Kardec teria "inspirado" a doutrina da FEB, sem fazer qualquer questionamento se as abordagens de Adolfo Bezerra de Menezes estariam, na verdade, mais influenciadas no catolicismo de Roustaing do que no cientificismo de Kardec, o que ocorreu de fato.
Mary recusa essa problemática. Prefere se limitar a dizer que o Espiritismo surgiu no Brasil enfrentando tão somente a resistência da Igreja Católica e da sociedade policialesca da época, que chamava a polícia para fechar "centros espíritas" e prender seus envolvidos.
Quando muito, Mary apenas procura fazer a distinção entre o "espiritismo kardecista" e a umbanda, mencionando uma confusão hoje já superada, mas que durante muito tempo, até mesmo uns 20 anos atrás, ainda prevalecia no imaginário popular, entre os dois.
Ela até menciona o magnetismo de Franz Anton Mesmer e faz seu histórico, ignorando, no entanto, que o autor é desprezado pelos "espíritas" brasileiros a ponto de não haver a publicação de um único livro traduzido em português do autor alemão. Mary também ignora que hoje os passes, por exemplo, se reduziram a um mero ritual de sacudir as mãos, sem qualquer cuidado com os métodos magnetistas estudados.
Mary também cita o caso das "mesas giratórias" (ou "mesas volantes", como consta no livro), um fenômeno antigo, mas que havia se tornado moda na França do século XIX e foram analisadas pelo pedagogo Hippolyte Rivail antes dele assumir o codinome Allan Kardec. Rivail já era também um estudioso do magnetismo de Mesmer, tendo traduzido para o francês vários livros deste.
O problema, no entanto, é que Mary não mencionou os problemas internos do "movimento espírita", algo que parece supérfluo para um trabalho que ela julga ter sido dedicado aos iniciantes em assuntos sobrenaturais. Mas não é.
Ela poderia citar as polêmicas de uma forma ligeira, até pelo fato de Jean-Baptiste Roustaing querer "sobrenaturalizar" o sobrenatural, apostando na tese de que espíritos humanos reencarnariam em animais, plantas e até micróbios. E Roustaing foi durante muito tempo mais valorizado que Kardec entre as lideranças da FEB. E muito mais valorizado que se pensa.
O histórico "higienizado" da FEB pode dar uma péssima impressão para os iniciantes, já que muitos imaginam que o "espiritismo" catolicizado da federação, às custas de figuras como Bezerra de Menezes e Chico Xavier, é erroneamente herdado do cientificismo de Allan Kardec, que só descrevia a ideia de religião no sentido antropológico e filosófico, mas não no sentido místico-institucional.
Por isso o livro Do Outro Lado acaba sendo um trabalho menor da notável historiadora. Não que o livro não sirva para pesquisas, já que, descontando o histórico "limpo" da Doutrina Espírita no Brasil, o trabalho mostra dados bem interessantes sobre o tema do sobrenatural.
Mas o livro peca por essa visão oficialesca e superficial do Espiritismo, que mesmo num trabalho que se anuncie como introdutório e talvez comercialmente viável torna-se um procedimento muito perigoso. Isso porque a Doutrina Espírita, da forma como foi feita no Brasil, foi corrompida em prol de um misticismo que prejudicou por dentro a divulgação do Espiritismo no Brasil.
E esse aspecto negativo, que inclui disputas de poder, vaidades pessoais, expulsão de membros "incômodos" e toda sorte de deturpações, fraudes e pregações moralistas bastante retrógradas, é o que mais carateriza o "espiritismo" brasileiro, realidade cuja omissão pode significar um choque para seus seguidores assim que tais irregularidades forem reveladas.
Por isso Mary Del Priore deveria, ao menos, antecipar aos leigos e iniciantes esse grave problema no "espiritismo" brasileiro, que é o conflito entre tendências religiosistas e científicas, com prejuízo para esta última, que era mais fiel às ideias originais do professor Kardec. A historiadora perdeu uma boa oportunidade de fazer essa prevenção.
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