domingo, 8 de junho de 2014

Caso Legião Urbana e a questão das famílias

À ESQUERDA, DADO VILLA-LOBOS E MARCELO BONFÁ, DOIS DOS TRÊS EX-MEMBROS VIVOS DA LEGIÃO URBANA. À DIREITA, O FILHO DE RENATO RUSSO, GIULIANO MANFREDINI.

Nos últimos anos, acontece uma batalha judicial envolvendo dois dos três ex-membros vivos da Legião Urbana, o guitarrista Dado Villa-Lobos e o baterista Marcelo Bonfá, e o filho de Renato Russo, Giuliano Manfredini, por causa do espólio do extinto grupo brasiliense.

O grupo acabou em 11 de outubro de 1996, pouco depois de lançar o álbum A Tempestade, com o falecimento do cantor e letrista Renato Manfredini Jr., o Renato Russo, por doenças agravadas pela ação do vírus HIV. Ele tinha 36 anos.

Atualmente a família disputa com os dois músicos - os únicos que, junto a Renato, levaram a Legião até o fim (o outro remanescente, o ex-baixista Renato Rocha, recentemente foi visto em situação de miséria) - os direitos de uso da marca Legião Urbana. Atualmente, o representante da família, Giuliano, leva vantagem jurídica na disputa.

Giuliano teria nascido de uma relação de Renato com uma fã, Rafaela Bueno, que teria falecido depois num acidente de trânsito. Essa informação é controversa. Há quem diga que Giuliano é filho adotivo. Em todo caso, ele foi criado por Renato Russo, que, homossexual, permaneceu solteiro até o fim da vida.

Giuliano tem 25 anos e é guitarrista de uma banda de rock. No entanto, ele, apesar do mérito da profunda afeição que tem do pai e ser admirador da Legião Urbana, não teve bagagem suficiente para se equiparar ao perfil do pai e era muito pequeno quando o pai havia falecido.

Renato Russo vivenciou a fase do rock em que o progressivo decadente cedia terreno para o punk rock, paralelamente ao rock psicodélico que empolgava os jovens brasileiros nos anos 70 e as experimentações pós-punk só eram apreciadas por meia-dúzia de "iniciados".

MÚSICOS CONVIVERAM MELHOR COM RENATO RUSSO

Por sua vez, Giuliano mal conseguia apreciar o rock pós-grunge que tocava em rádios comerciais como 89 FM (SP) e Rádio Cidade (RJ), artisticamente superficial e sem muita criatividade. Artisticamente, Giuliano mais parece "filho" de Chorão, o falecido cantor do Charlie Brown Jr., bem mais fechado nos aspectos "pragmáticos" da "cultura rock" de seu tempo.

Por outro lado, Marcelo Bonfá e Dado Villa-Lobos são amigos de juventude de Renato Russo e conviveram com ele não só nas atividades profissionais da banda, mas em muitas diversões de amigos. Eles é que teriam direito ao uso do nome Legião Urbana, o que deixaram claro quando encerraram um comunicado com a seguinte fórmula:

RENATO RUSSO = RENATO RUSSO
LEGIÃO URBANA = DADO VILLA-LOBOS + RENATO RUSSO + MARCELO BONFÁ

NEM SEMPRE PARENTE É CÚMPLICE

A lição que o episódio conta é que nem sempre alguém da família é capaz de compreender a natureza da personalidade do ente que se foi, e o tipo de convívio familiar não necessariamente corresponde à mesma natureza de um convívio entre colegas e amigos fora do círculo familiar.

Afinal, são atividades diferentes, experiências sociais diferentes. Nem sempre pais ou filhos compartilharam das mesmas experiências sociais dos indivíduos falecidos, e muitos casos heranças se tornam bastante problemáticas, independente do ente ter morrido ou não.

Só para citar, por exemplo, o cineasta Walter Salles Jr., ele não optou por seguir a atividade de banqueiro do pai, Walter Moreira Salles, apesar de ter herdado o nome. Walter decidiu ser cineasta e buscar para si questões progressistas que diferem do universo ideológico vivenciado pelo pai, que faleceu em 2001.

Já no caso da Legião Urbana, como é que um rapaz que não tem a mesma vivência sócio-cultural de Renato Russo será responsável pelo legado dele e de seu grupo? Neste sentido, o mérito está nos dois músicos da banda, apesar deles terem sido derrotados na Justiça. Na luta para ganhar a disputa, Dado e Marcelo contaram com o apoio dos colegas dos Paralamas do Sucesso.

A vida é muito complexa. É muito fácil fulano que é pai, mãe, filho ou irmão de alguém falecido ser tido como cúmplice ou especialista do ente finado, mas não é sempre assim. Às vezes irmãos podem se discordar seriamente.

Exemplos não faltam. Uma irmã de Fidel Castro não concordava com sua adesão ao comunismo. Os irmãos Gallagher, do Oasis, são marcados por sérias divergências. Carlos Lacerda bem que tentou, mas rompeu bruscamente com a herança ideológica do pai comunista, o jornalista Maurício Lacerda. A discreta atriz Mariska Hargitay não herdou o estilo sexy da mãe Jayne Mansfield.

A experiência de vida oferece contextos diversos. Em muitos casos, pai, mãe ou filho está (ou estão) distantes de uma atividade social de alguém. A afeição é justa, mas ela não substitui a vivência não-compartilhada, os familiares se sentem bem menos herdeiros do legado de seu ente, caso ele esteja falecido.

Confundir afeição com experiência social cria distorções sérias que fazem com que os próprios familiares, no caso do "espiritismo" brasileiro, se deixem cair em inúmeras armadilhas. Se fora dessa doutrina, há casos como o próprio tributo a Renato Russo organizado por Giuliano, às custas de um discutível holograma e duetos duvidosos como os de Ivete Sangalo, imagine dentro dela.

Aí se vê mensagens de farsantes carregadas de "palavras de amor", só porque imitam aspectos superficiais dos entes falecidos. Se vê homenagens que de nenhum modo agradariam o falecido, vinda de gente da qual o falecido não se interessaria em fazer uma profunda e sincera amizade.

Por isso, nem sempre os parentes têm mérito para herdar o espólio do ente falecido. A herança só é possível dentro de alguns limites, como a compreensão exata do legado do falecido e evitar a pretensão do ente querido ser "especialista" de sua trajetória, a não ser quando a situação e o contexto permitem, como no caso de Erik Rocha, filho do cineasta baiano Glauber Rocha.

Em muitas situações, são colegas de trabalho ou de escola que melhor representariam o legado de alguém que faleceu, por conta da natureza das atividades compartilhadas ou, pelo menos, com a identificação plena àquilo que o falecido fazia e representou, coisa que não é fácil, porque não basta somente a admiração subjetiva ou a compreensão superficial da trajetória do finado.

O "espiritismo", que superestima a missão das famílias terrenas, passa longe dessas questões. E, se for por esta doutrina, a causa sempre será ganha no lado de Giuliano Manfredini. No entanto, a vida mostra que o legado da Legião Urbana é melhor representado por Dado e Marcelo, estes sim que tiveram a vivência compartilhada das atividades realizadas por Renato Russo.

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