terça-feira, 13 de maio de 2014

"Brasil, Coração do Mundo, Pátria do Evangelho" e a escravidão


Hoje já não se considera o 13 de maio como marco da luta contra a escravidão, uma vez que a princesa Isabel, filha do imperador Dom Pedro II, apenas assinou um documento de importância menor, uma vez que não garantiu a inserção do povo negro na sociedade, tirando-o do cativeiro mas jogando-o à própria sorte.

Mesmo assim, cabe aqui mencionar a relação do tema escravidão com o livro Brasil, Coração do Mundo, Pátria do Evangelho, que Chico Xavier atribuiu tendenciosamente ao espírito do escritor Humberto de Campos, que, ao que tudo indica, nunca escreveu esse livro.

Afinal, a obra é risível por adotar uma visão um tanto deturpada ao nível dos livros didáticos da época. Sua promessa de ser um livro de vanguarda, no pretexto da aparente inovação do "espiritismo" introduzido poucas décadas antes no Brasil, em nada se cumpriu, pois o livro apenas repete a abordagem caricata e um tanto mofada dos livros de História então ensinados nas escolas.

Nele, o "iluminado" espírito Ismael, tido como o "protetor espiritual" do Brasil, comete o constrangedor equívoco de denominar o país de Terra de Santa Cruz, como os desinformados navegantes comandados por Pedro Álvares Cabral entendiam a terra em 1500. E isso em relatos supostamente psicografados em 1938!

ÁFRICA DEFINIDA COMO SE FOSSE UM INFERNO

A visão do povo africano descrita no referido livro é de uma grande infelicidade. Com uma visão sutilmente racista e paternalista, o suposto diálogo entre Ismael e um Jesus caricato feito nos moldes do catolicismo medieval define o povo africano como "sem consciência".

A África é definida ligeiramente como se fosse um inferno, o povo africano generalizadamente descrito como "sofredor". Não que os africanos não tivessem seus sofrimentos e injustiças, mas a impressão que se tem é que na África, a julgar pelo que o "iluminado" livro descreve vagamente, não há também alegrias, cultura, festividades, organizações sociais.

"Os donatários dos imensos latifúndios de Santa Cruz fizeram-se à vela, escravizando os negros indefesos da Luanda, da Guiné e de Angola. Infelizmente, os pobres cativos, miseráveis e desditosos, chegam à pátria do nosso Evangelho como se fossem animais bravios e selvagens, sem coração e sem consciência", teria dito Ismael no citado diálogo.

Tal visão ignora, por exemplo, que os escravos eram na verdade dominados por negros rivais, em disputas de poder de tribos hostis, mas que antes dessas condições eram um povo organizado, feliz e com clara consciência de suas vidas e suas missões sociais.

Essa consciência se manteve nas mentes dos cativos, se eles pareciam "selvagens" é por causa da profunda revolta de serem tirados de seus locais de origem, onde eram cidadãos livres que já haviam sido capturados por rivais, sem poder reagir contra homens dotados de armas e crueldade que os africanos sequestrados não conheciam.

Em relação ao lamentável processo de exploração e comercialização da mão-de-obra escrava, em que pese admitirem o sentido negativo da escravidão, o Jesus do livro recomenda uma atitude de conformismo e oração, desaconselhando a inconformação com a situação, que será "resolvida" depois, com as "consequências" do livre arbítrio.

Segue um trecho em que se supõe a predestinação de Portugal de "trazer" os africanos para o Brasil, diante da predestinação mecânica de juntar os "povos humildes" no território brasileiro para a formação da "pátria do Evangelho":

"Ismael, asserena teu mundo íntimo no cumprimento dos sagrados deveres que te foram confiados. Bem sabes que os homens têm a sua responsabilidade pessoal nos feitos que realizam em suas existências isoladas e coletivas. Mas, se não podemos tolher-lhes aí a liberdade, também não podemos esquecer que existe o instituto imortal da justiça divina, onde cada qual receberá de conformidade com os seus atos. Havia eu determinado que a Terra do Cruzeiro se povoasse de raças humildes do planeta, buscando-se a colaboração dos povos sofredores das regiões africanas; todavia, para que essa cooperação fosse efetivada sem o atrito das armas, aproximei Portugal daquelas raças sofredoras, sem violências de qualquer natureza. A colaboração africana deveria, pois, verificar-se sem abalos perniciosos, no capítulo de minhas amorosas determinações".

Em outro trecho, o suposto Jesus continua recomendando a conformação, contradizendo as próprias qualidades de Jesus de agir contra as injustiças sociais, já que, em verdade, Jesus havia feito, em vida, seu ativismo esclarecendo e instruindo as pessoas: "Não nos compete cercear os atos e intenções dos nossos semelhantes e sim cuidar intensamente de nós mesmos, considerando que cada um será justiçado na pauta de suas próprias obras".

Há ainda a desinformação de que Portugal, naquelas épocas de "descoberta do Brasil" - que sabemos que não houve, porque o Brasil já era um território explorado por outrem e povoado por povos existentes nele desde a Antiguidade - , tal como a Espanha, não tem mais o "povo mais pobre e mais laborioso da Europa", já que a Península Ibérica era uma das regiões ainda atrasadas na Europa, em que pese o progresso que se notava sobretudo na indústria de navegação.

Negros e índios são considerados, no livro, "sub-raças", tratados de forma inferiorizada e paternalista como "sofredores", e as regiões em que viviam eram tidas como "regiões inferiores". Típica visão de preconceito social que, naquela época contaminava a Antropologia, tomada de uma visão etnocêntrica e eurocêntrica, e a História, descrita sob a perspectiva dos vencedores.

Já na época do lançamento do livro de Chico Xavier, o ano de 1938, funcionava plenamente o movimento da Escola dos Annales, dos franceses Marc Bloch e Lucien Febvre, que transformou as pesquisas nas ciências sociais, fazendo com que se considerem e admitam pesquisas sob o ponto de vista de pessoas anônimas e humildes, sem precisar usar o critério da fama ou do poder.

Isso já põe em xeque-mate o livro Brasil, Coração do Mundo, Pátria do Evangelho, que se manteve em velhas abordagens, comprometendo seriamente a promessa, não cumprida, de um livro "revelador". Isso porque, fora da órbita "espírita" desse livro, havia gente vendo negros e índios de maneira bem mais realista do que a "iluminada" obra.

Através da Escola dos Annales, podemos ver a situação de negros e índios não mais como "miseráveis", mas como povos diferenciados dotados de suas próprias organizações sociais, com legados culturais admiráveis e estruturas até complexas de parentesco e mobilização político-social, e cujos infortúnios, descontando rivalidades tribais, se devem à ignorância e à tirania dos exploradores europeus.

Quanto ao 13 de maio de 1888, o livro erra por encarar a data de maneira entusiasmada, definindo a atitude da princesa como "espírito magnânimo" e definindo esse dia, de mera assinatura formal de um documento sem efeitos concretos, como a realização dos "mais elevados ensinamentos cristãos". Daí o trecho:

"Por toda parte, espalharam-se alegrias contagiosas e comunicativas esperanças. O marco divino da liberdade dos cativos erguia-se na estrada da civilização brasileira, sem a maré incendiária da metralha e do sangue".

Sabemos que não foi bem assim. Os senhores de engenho ficaram irritados porque caíram no prejuízo, eles, atrasados que eram, tinham na escravidão a sua atividade econômica, e não receberam sequer orientação e investimentos para se adaptarem à Revolução Industrial tardiamente a ser introduzida no país. E mesmo os abolicionistas acharam a Lei Áurea muito frouxa e ineficaz.

A sociedade ficou como está, sendo necessárias outras pressões sociais para que progressos pudessem ser conquistados. Porque, se for pela Lei Áurea, tão exaltada pelos louvores febianos, os negros eram jogados à própria sorte, apenas mudando o contexto de sua marginalização social, propiciando o aumento do trabalho informal e mal-remunerado, da favelização e até da violência.

Portanto, o paternalismo um tanto racista do livro Brasil, Coração do Mundo, Pátria do Evangelho vai contra a História que comprovou que a Lei Áurea foi insuficiente para promover a emancipação social do povo negro no Brasil. E mescla ao seu moralismo religioso a falsa cordialidade bem comum àqueles que querem disfarçar os sentimentos racistas em nosso país.

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