domingo, 17 de novembro de 2013
Jean-Baptiste Roustaing, o homem que deturpou o Espiritismo
Uma das raízes para a deturpação das lições espíritas do professor Allan Kardec, com toda a certeza, está na publicação do livro Os Quatro Evangelhos, que o advogado Jean-Baptiste Roustaing, também francês, havia publicado em 1866, e que havia sido a obra matriz do "espiritismo" à Brasileira, desde a fundação dos primeiros centros espíritas a partir de 1865.
Aparentemente vinculado a Kardec, pela aparente declaração do codificador de que a obra "não apresenta contradições" com o que Kardec ensinou em O Livro dos Espíritos e O Evangelho Segundo o Espiritismo, o livro passou a ser uma das peças chave para a fundação da Federação Espírita Brasileira, FEB.
Para mim, acho que houve uma tradução mal-interpretada em relação à declaração de Kardec. Aparentemente, Kardec "não vê contradições" entre seus dois livros e o de Roustaing, mas aponta algumas falhas de método e abordagem no livro. Não sou conhecedor de francês, e seria melhor que algum especialista pudesse detalhar melhor essa questão.
O que se sabe é que Roustaing fugiu da essência científica da doutrina de Kardec e publicou Os Quatro Evangelhos - que tem o tendencioso subtítulo de A Revelação da Revelação - se servindo apenas de uma única médium, a madame Emilie Collignon, que havia recebido mensagens atribuídas aos quatro evangelistas do Novo Testamento, Mateus, Marcos, Lucas e João.
Segundo o que afirma Roustaing, os quatro evangelistas teriam ditado as mensagens assistidos pelos apóstolos de Jesus Cristo e pelo profeta Moisés, e o advogado francês teria supervisionado os trabalhos a partir do que madame Collignon registrava de sua mediunidade.
O método foi questionado por Kardec porque o trabalho mediúnico se deu apenas através de uma única médium. Adepto do método cético de René Descartes, famoso matemático, físico e filósofo francês, Kardec recomendava que se consultasse mais de um médium para verificar se as mensagens são realmente dos espíritos declarados, e ainda assim sob a maior cautela possível.
Além disso, Os Quatro Evangelhos têm o mérito comprometido por apresentar uma visão mística e moralista católica, e, entre outros equívocos, investe na tese de que os seres humanos podem reencarnar até como animais, vegetais e vermes, contrariando a linha evolutiva do espírito.
Outro aspecto é que o livro de Roustaing afirma que Jesus não era um homem encarnado, mas um "fluído", o que traz um grave equívoco, porque transforma Jesus em um ente sobrenatural e que, não tendo um corpo físico, teria apenas fingido sofrer o que sofreu, principalmente quando recebeu a condenação ao martírio da cruz.
Apesar das polêmicas, o livro de Roustaing teve receptividade no Brasil pelos primeiros líderes considerados "espíritas". O maior propagandista de Roustaing foi o deputado abolicionista e médico Adolfo Bezerra de Menezes, um dos primeiros a ler os originais franceses do referido livro.
A primeira tradução brasileira só viria 25 anos depois da fundação da FEB. O livro Os Quatro Evangelhos foi editado em três volumes na edição de 1909 traduzida por pelo militar e escritor Francisco Raimundo Ewerton Quadros.
No entanto, a edição definitiva só veio em 1920, quando o engenheiro Luiz Olímpio Guillon Ribeiro traduziu o livro de Roustaing e o dividiu em quatro volumes. É esta a tradução que se encontra no mercado, até hoje, através da editora da FEB.
A polêmica causada pelo livro, que gerou uma reação enérgica dos adeptos do espiritismo científico, que achavam absurdas as ideias difundidas no livro, fez com que o conflito entre roustanguistas (ou rustanistas, num aportuguesamento simplificado) repercutisse de forma problemática nos bastidores do chamado movimento espírita.
Com isso, mesmo com a FEB mantendo Os Quatro Evangelhos como um dos livros básicos de sua "doutrina", aos poucos se esforçou em ocultar a figura de Roustaing, tão misteriosa que não se tem sequer alguma foto que o identificasse.
A enigmática figura de Roustaing, que na França havia tido desavenças com Kardec - que, educadamente, se esforçava em questionar os erros de Roustaing com paciência e habilidade filosóficas - e que, de sua parte, fez do professor lionês seu desafeto, hoje é esquecida e pouco difundida pelo espiritolicismo, apesar de suas ideias continuarem valendo.
Afinal, descontado o absurdo da reencarnação em forma de vermes, animais ou vegetais, a FEB manteve o legado de Roustaing que, na sua "doutrina espírita", contribuiu sobretudo no desenvolvimento de ritos inspirados no Catolicismo - como a "água fluidificada" para a "água benta" católica, o "auxílio fraterno" para o confessionário, os médiuns "sacerdotais" etc.
Além disso, a herança de Roustaing - dissimulado hoje pela memória espiritólica como um moleque que quebrou o vidro da casa de alguém e foge - se estendeu também pelas visões moralistas, pelo misticismo extremo e surreal e pela verborragia pseudo-científica que o espiritolicismo utiliza nos nossos dias.
Hoje os ideólogos do espiritolicismo tentam, erroneamente, atribuir as ideias de Roustaing a Allan Kardec, já que é de praxe a FEB forçar o vínculo definitivo entre esses dois autores, de abordagens completamente diferentes e opostas do conhecimento espírita, com a vantagem real para Kardec, cujo trabalho científico é praticamente ignorado pelos "espíritas" do Brasil.
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