terça-feira, 21 de fevereiro de 2017

Neo-roustanguismo: nova tendência do "movimento espírita"?

SÓ FALTAM VOLTAR OS "CRIPTÓGAMOS CARNUDOS" OU A REENCARNAÇÃO HUMANA EM PLANTAS, MICRÓBIOS, VERMES, VÍRUS OU INSETOS.

Esta a caminho, no "movimento espírita", a retomada do roustanguismo, não necessariamente reassumindo o nome de Jean-Baptiste Roustaing, o responsável do livro Os Quatro Evangelhos, mas a volta do mais conservador misticismo religioso como tendência hegemônica.

Desde mais ou menos 1975, com o fim da Era Wantuil - ele se aposentou em 1970, morreu quatro anos depois, mas sua influência se deu até o meio da década setentista - , veio a tendência dúbia do "movimento espírita", em que se fingiu a retomada das bases originais kardecianas que servia apenas para disfarçar o igrejismo extremado do movimento.

Era um igrejismo pseudocientífico, uma tendência que, aos olhos dos incautos, parecia um suposto equilíbrio entre Filosofia, Ciência e Moral e uma ênfase um tanto tendenciosa e arrivista da "bondade" e "caridade". Uma "bondade" que mais fascina do que ajuda, como se fosse um conto de fadas de gente grande.

A fase dúbia do "movimento espírita" representou a ascensão de Divaldo Franco, ele a personificação exata desta fase, mais do que Francisco Cândido Xavier, ainda ligado a um roustanguismo ainda assumido, mas já sofrendo escândalos.

Isso porque Divaldo Franco personifica com nitidez as contradições desta fase. Seu perfil lembra o de um professor dos anos 1930-1940, de ares aristocráticos, pedagogia hierarquizada, um perfil extremamente conservador, mas dissimulado por uma reputação pretensamente intelectual e científica, embora também um católico ortodoxo com timbre vocal de um padre.

Mesmo sendo um deturpador, Divaldo Franco poderia se camuflar de "fiel discípulo de Allan Kardec", tentando se vincular, de maneira oportunista e falsa, aos esforços de recuperação das bases espíritas originais. Seu simulacro de intelectualismo através de um discurso verborrágico garante isso e o pretexto de "bondade" também o faz querer entrar no Espiritismo autêntico pela porta dos fundos.

E aí, simbolicamente, vemos Divaldo levando Chico Xavier de carona. Xavier já é um forasteiro mais explícito: era um católico ortodoxo, mas de hábitos paranormais, que depois foi adotado pela FEB para produzir livros que fizessem fortunas para a instituição. Era moleza: a FEB ficava com os lucros, a sociedade pensava que era para a "caridade" e o "movimento espírita" se constituía numa aristocracia religiosa cuja gravidade é subestimada pela opinião pública.

Desta forma, os inimigos internos do Espiritismo - somos obrigados, pela lógica da realidade, a considerar desta forma Chico e Divaldo, pelo conteúdo das ideias trazido por seus livros, palestras e depoimentos - tiveram uma oportunidade de embarcar sempre em qualquer esforço de recuperação dos postulados kardecianos, como se a mentira fosse sempre a zelosa amiga da verdade.

É como no cenário político recente, quando Eduardo Cunha, então presidente da Câmara dos Deputados, era exaltado como um "paladino da moralidade", propôs uma série de retrocessos políticos depois assumida pelo presidente da República, Michel Temer, e apoiada por setores e figuras do Judiciário (Sérgio Moro, Gilmar Mendes etc) e Ministério Público (Deltan Dallagnol). Denunciado por corrupção, Cunha foi depois descartado, mas demorou muito para isso.

Jean-Baptiste Roustaing também foi exaltado pelo "movimento espírita". Em uma das primeiras "pseudografias", um estranho "espírito Allan Kardec" trazido pelo "médium" Frederico Júnior, da FEB, pedia para que conhecêssemos a "revelação da revelação", eufemismo dado por Roustaing aos retrocessos que ele propunha na primeira tentativa de "catolicizar" o Espiritismo.

Mas como Roustaing era denunciado pelos espíritas de tendência "científica", voltados pelas bases kardecianas, tamanha a traição doutrinária descrita em Os Quatro Evangelhos, ele foi então descartado aos poucos, não sem antes a FEB adaptar o roustanguismo à realidade brasileira, através de Chico Xavier.

A adaptação foi tão sutil que a ideia roustanguista dos "criptógamos carnudos" - a tese absurda da reencarnação de seres humanos dotados de falhas espirituais sérias em plantas, micróbios, vermes, vírus ou insetos - , que poderia evocar até a ideia kafkiana do homem transformado em barata, foi substituída por Chico Xavier pela ideia agradável de encontrar animais domesticos nas ditas "cidades espirituais", como Nosso Lar. Gatinhos, cachorrinhos, até mesmo passarinhos.

Aos poucos, Roustaing pôde ser descartado, não sem antes ser isolado no "alto clero" do "movimento espírita". E, diante do conflito da direção centralizadora da FEB, ainda nos tempos do presidente Antônio Wantuil de Freitas, com as federações regionais (apesar de originalmente surgida no Rio de Janeiro, a FEB só dava privilégios a uma federação paulista, a FEESP), a recuperação das bases kardecianas serviu de pretexto para um misto de farsa e oportunismo dos lesados pela FEB.

Foi aí que surgiu a tendência dúbia. O trampolim de Divaldo Franco, o "abrigo" ideológico para Chico Xavier fazer seu catolicismo pessoal mas sob o rótulo de "espiritismo autêntico" e um simulacro de cientificismo encharcado de muito misticismo ocultista. A partir daí, vieram os Gasparetto, Ramatis, crianças-índigo, um sem-número de falsas mediunidades etc. Tudo virou uma "casa da Mãe Joana". A tendência dúbia teve os principais objetivos:

1) USAR ALLAN KARDEC COMO "PARTIDO" - Como Roustaing era o símbolo da direção centralizada da FEB, ainda mais radicalmente defendido por sua cúpula depois da aposentadoria de Wantuil, os "dissidentes" que criaram a tendência dúbia usaram Allan Kardec como contraponto, prometendo um suposto retorno às bases doutrinárias. Daí que, tendenciosamente, a tendência dúbia passou a ser definida pela denominação um tanto hipócrita de "kardecismo autêntico".

2) AGRADAR ESPÍRITAS "CIENTÍFICOS" - Como o roustanguismo era largamente denunciado pelos espíritas "científicos", que cobravam da FEB respeito rigoroso aos postulados kardecianos originais, a tendência dúbia de roustanguistas enrustidos foi adotada de forma que, sem abandonar o igrejismo, seja simulada uma "volta às bases de Kardec" para agradar os espíritas realmente autênticos. Note-se que Chico Xavier e José Herculano Pires foram amigos. Mas "amigos, amigos...".

3) VALORIZAR FEDERAÇÕES REGIONAIS COMO DA BAHIA E MINAS GERAIS - A ideia é não só usar Kardec como um "rótulo" para se contrapor a Roustaing, mas também dar mais poder para federações regionais não contempladas pelo poder central da FEB. Os respectivos Estados de Chico Xavier e Divaldo Franco, Minas Gerais e Bahia, reivindicavam poder de decisão, e, com a tendência dúbia, ganharam maior destaque.

4) ILUDIR A OPINIÃO PÚBLICA COM A FALSA IMPRESSÃO DE QUE O LEGADO DE ALLAN KARDEC ESTÁ PRESERVADO - Tomando como base a tradução de Salvador Gentile (editora IDE), até depois das denúncias dadas à tradução de Guillon Ribeiro e a ameaça de uma tradução ainda mais roustanguista dos livros de Kardec, a tendência dúbia tenta, com seus simulacros de cientificismo e filosofia, que mal conseguiam disfarçar o igrejismo mais entusiasmado, dar à opinião pública a falsa impressão de que o legado de Allan Kardec está salvo e preservado.

5) USAR A "BONDADE" COMO ESCUDO PARA QUALQUER ERRO COMETIDO - O poder da tendência dúbia do "movimento espírita" se consolida de maneira bastante habilidosa. Qualquer irregularidade identificada nos "espíritas" da tendência dúbia era rebatida com a desculpa de que "pelo menos eles acertam pela 'bondade'". Uma "bondade" estereotipada, com caridade frouxa, feita mais para deslumbrar do que para realmente trazer algum tipo de progresso social.

Quanto a este quinto item, Chico Xavier foi pioneiro. Esperto, ele sempre apelou pelo coitadismo, pelo vitimismo quando era duramente criticado. Era uma maneira de se passar por benevolente e levar vantagem ficando quieto e fazendo uma postura supostamente triste e resignada. A manobra depois era seguida pelo triunfalismo, a mania de querer se achar vencedor em sucessivas derrotas, um meio sutil de não aceitar ser derrotado, uma arrogância disfarçada de humildade.

Agora, com a retomada da sociedade conservadora, o que se vê é a retomada do roustanguismo, que em 2015 já fazia parte da pauta da FEB. Ela retomou as rédeas depois que Chico Xavier faleceu, alguns astros "espíritas" já não são jovens (Divaldo Franco tem quase 90 anos, João de Deus faz tratamento contra câncer e mesmo José Medrado é um senhor de 55 anos) e não há um grande nome a figurar no "movimento espírita".

Desta forma, sem um nome carismático - o escritor Robson Pinheiro não tem vínculo formal com o "espiritismo" e lançou livros de apelos fascistas, que só agradariam as minorias entrincheiradas no Movimento Brasil Livre e similares - , o "espiritismo" parece voltar a assumir um viés ainda mais conservador, através do que publicações, páginas e palestras "espíritas" demonstram.

A ênfase nos "aspectos morais", evocando valores conservadores ligados à Família, à fraternidade e outros dogmas religiosos de herança católica, além da apologia ao sofrimento humano que revela o vínculo "espírita" da Teologia do Sofrimento (herança de Chico Xavier, devoto desta corrente), tornam-se os temas desta nova fase do "movimento espírita".

Trata-se de um neo-roustanguismo que, no entanto, não evoca o nome de Jean-Baptiste Roustaing. a FEB já tem uma nova série de traduções dos livros de Allan Kardec, embora se destaque também as traduções da IDE. Mas chama a atenção o fortalecimento do legado católico medieval nas pregações "espíritas" de hoje, o que pode fazer a fase dúbia chegar ao seu fim.

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