quarta-feira, 18 de janeiro de 2017
Texto "espírita" amplia sentido de "caridade" para... Serviço?
O "espiritismo" é um bale de belas palavras, um espetáculo de palavras bonitinhas e até aparentemente bem intencionadas, que muitas vezes desviam do foco da doutrina de Allan Kardec - "muitas vezes" é apelido, porque quase sempre isso acontece - para dar lições moralistas num tom bastante paternalista e simpático.
Sempre surgem os "cavaleiros da esperança" que lançam palavras bonitas e textos descontraídos, que servem de água com açúcar para os adeptos do "movimento espírita". Há vários deles nos "centros", com suas palestras "empolgantes", admite-se até menos maçantes que a verborragia espetacular de um Divaldo Franco. Mesmo assim, são, como no conjunto da obra, palestras de mistificação e pregações moralistas, não raro bastante severas.
Um texto que ilustra bem isso é o recente "A Teoria e a Prática", de Richard Simonetti, um dos festejados palestrantes do "movimento espírita". Diante dos desavisados "espíritas" brasileiros, o texto poderia soar uma "análise prática", da "vida simples do cotidiano", dos ensinamentos kardecianos, dentro de uma abordagem ao mesmo tempo simplória e superficial, não bastasse a visão deturpada da orientação igrejeira.
O texto mostra o casal, Custódio e Nora, que acolhem outros casais amigos que conheceram de atividades "espíritas", que conversam de maneira animada numa casa onde tem até crianças fazendo barulho com suas brincadeiras.
Custódio, sentado, sempre pedia para Nora lhe fazer um favor, servir refrigerantes, atender a campainha etc. Ficava "acomodado". Lembrando uma conversa com Osório (membro de um dos casais), que citava Agostinho (o filósofo Santo Agostinho, que se manifestou em mensagem aproveitada em O Livro dos Espíritos), Custódio refletiu sobre a "oportunidade de fazer algo pelo semelhante".
Custódio falava sobre esses atos, mas não praticava. Na conversa com os amigos, havia dito: "As pessoas têm uma visão distorcida da Caridade. Há quem a suponha uma contribuição mensal a obras assistenciais ou o atendimento de um necessitado que nos procura. Parece-me, todavia, que não se trata de um comportamento para determinadas situações e, sim, de uma atitude perante a vida. Onde estivermos, no lar, no local de trabalho, na rua, podemos exercitá-la, estimulando o bem onde estivermos".
A lição do texto de Richard Simonetti - figura bastante prestigiada na FEB, há muito tempo - , o sentido da "caridade" está em "cumprir o dever" e aproveitar, em tese, todo momento para ajudar as pessoas e trazer algum benefício a elas. Tudo muito bem intencionado, mas cabe algumas reservas.
Em primeiro lugar, os próprios "espíritas" se comportam como Custódio e mesmo os palestrantes fazem isso. Diante de uma religião moralista e ultraconservadora que é o "espiritismo", em que a "caridade" prioriza ajudas "seletivas" aos algozes, arrivistas e miseráveis extremos, o "sentido amplo" da caridade se esvazia diante do sistema de desigualdades sociais.
No moralismo "espírita" que influi, energeticamente, nas situações surreais vividas por pessoas necessitadas que recorrem a essa seita, o "convite da caridade" se limita ao consentimento dos abusos dos algozes, ao convívio tendencioso com os arrivistas e ao assistencialismo paternalista aos miseráveis apenas para evitar os efeitos extremos das desigualdades sociais, mais para prevenir o ônus social das elites do que para resolver os graves casos de pobreza extrema.
A "ampliação" do sentido da "caridade" apenas ao ato de "servir", dado assim de forma vaga e simplória, não resolve e não traz respostas aos problemas vividos pela natureza humana. O "serviço", como expressão de bom-mocismo, pode ser feito sem que injustiças sociais fossem desafiadas e sem que o jogo de interesses marcado pelas conveniências fosse posto em xeque.
Um exemplo. Um rapaz quer namorar uma mulher considerada não só atraente, mas culta, discreta e muito inteligente. Mas ele atrai apenas aquelas moças "vulgares" que só ostentam os corpos e ouvem músicas de gosto duvidoso. Que "caridade" pode consistir no rapaz aceitar namorar uma dessas moças grotescas pela razão simplória de "fazer o bem" ensinando coisas boas e valores relevantes, se comportando mais como um professor de bons modos do que um namorado?
Além disso, essas moças "vulgares" quase nunca estão receptivas para aderir aos valores ensinados pelo rapaz. E, mesmo que se convençam de tal adesão, não é algo natural, mas algo forçado pelas circunstâncias, motivado pelas conveniências e estimulado pelo tendenciosismo. A "caridade" se torna inútil, porque torna-se apenas fachada para sustentar o jogo de interesses, porque tais moças querem ter rapazes discretos como namorados apenas por arrivismo e fetiche sexual.
Outro dado a considerar é a que ponto os próprios palestrantes "espíritas" podem pregar tais conceitos, quando eles mesmos os descumprem, sempre fazendo um belo espetáculo de palavras bonitas e atos de fachada ("caridade paliativa" feita mais para impressionar o público do que ajudar as pessoas), se iludindo que estão "servindo a humanidade" ao ostentar a perfeita coreografia de textos "comoventes".
O "espiritismo" deturpador tenta ser um primor de moralismo. O problema não está na lição de Santo Agostinho, ele que havia sido um padre católico que, vivendo na Idade Média, se empenhou em superar o obscurantismo medieval, atuando como cientista e intelectual, como um filósofo que iniciou o caminho longo para o Iluminismo.
O grande problema está na abordagem igrejeira dos "espíritas", que vão na contramão de correntes católicas avançadas - do exemplo pessoal de Agostinho à Teologia da Libertação - , caminhando para o obscurantismo e a Teologia do Sofrimento (claramente defendida, embora nunca assumida, por Chico Xavier).
É muito fácil dar, dar e dar, quando se aceita tudo, quando não se avalia o peso das circunstâncias e dos contextos. Fácil aceitar o sofrimento e dar o que não tem, ou servir ao abuso de outro com resignação e fé.
O recado de Richard Simonetti se esquece do fundamental: a vida não é só aceitação, existem também momentos de recusa, e as maiores renúncias não estão no ato, por si só, de recusar benefícios, mas de recusar as circunstâncias de sofrimento e expiação. O humilde não é aquele que diz "sim" o tempo inteiro, mas o que diz "não" no momento certo para dizê-lo.
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