sexta-feira, 2 de setembro de 2016

A grande mídia pode transformar lorota em uma linda história


O relato parece comovente. Um engenheiro que passava lua de mel em Gramado, com sua esposa, em 2008, teria se sentido mal. Voltando para a cidade de origem, Santos, ele foi internado em um hospital católico e o médico diagnosticou oito abcessos no cérebro, dizendo que são pouquíssimas as chances de sobrevivência.

A esposa, então, foi para uma paróquia, pediu ajuda a um padre, que lhe deu uma medalha de Madre Teresa e o folheto de uma oração. A mulher foi então orar e o engenheiro, de 35 anos, que havia entrado em coma antes da esposa ir para a paróquia, acordou, perguntou aos médicos o que fazia ali e levantou por conta própria e tomou o café, como se nenhuma coisa tivesse acontecido.

Oficialmente, o episódio do engenheiro Marcílio Haddad Andrino intrigou médicos e cientistas, constituindo num suposto milagre atribuído à Madre Teresa de Calcutá, falecida em 1997. O engenheiro irá ao Vaticano assistir à cerimônia de canonização, daqui a dois dias. Mas o episódio é bastante tendencioso, se percebermos vários aspectos relacionados.

No Brasil, o episódio é narrado com muito entusiasmo pelo Fantástico, jornalístico de variedades da Rede Globo de Televisão. É o mesmo programa que insistiu num triplex de Lula que documentos comprovam nunca ter sido dele nem de sua esposa, mas da empreiteira OAS.

A Rede Globo é um dos mais tendenciosos veículos da mídia brasileira. Esteve empenhada na campanha de desmoralização de Dilma Rousseff e na defesa do governo de Michel Temer, composto de uma retrógrada agenda política.

Diante da campanha violenta contra o PT, contra o qual se estimulam até calúnias, difamações e mentiras - há um vídeo fraudulento em que um suposto Lula ameaça matar Sérgio Moro. Uma mentira descarada, mas se até a revista Isto É trata Dilma Rousseff como se fosse uma descontrolada, Lula também receberia o mesmo tratamento ofensivo por parte da mídia e seus seguidores.

Já no caso de Madre Teresa de Calcutá, a coisa é diferente. Transforma-se uma lorota em uma bela história, causando comoção no público, que tem suas fraquezas emocionais exploradas dessa forma tão leviana. Não há provas que Marcílio realmente teria tido um coágulo devastador no cérebro.

O que pode ter acontecido é que Marcílio deve ter tido um mal-estar, talvez um formigamento no cérebro depois de uma refeição exagerada. e o "mal devastador" teria sido apenas um problema de intoxicação alimentar, já que o relato dá indícios disto. O "coma" teria sido apenas um repouso prolongado.

Mas a farsa do "milagre" tem ainda outro detalhe: o hospital onde Marcílio foi internado se chama São Lucas. É um hospital católico. Além disso, há um indício de exclusividade da versão oficial da Igreja Católica, conforme admite o irmão do engenheiro:

"É um assunto que está sendo coordenado de forma única (pela Igreja Católica), assim evitamos diversas fontes de informação que no final podem vir a causar problemas", disse o irmão de Marcílio em entrevista ao jornal O Globo.

Isso já indica parcialidade. E mostra o quanto o episódio tem que ser comprovado sem a confrontação de fontes adversas. É o contrário do que ocorre com a informação, na qual se confrontam pontos de vistas diferentes para buscar a coerência dos fatos.

Há, portanto, a sonegação de qualquer questionamento. A Igreja Católica quer estabelecer um monopólio de informação, cabendo apenas a ela a prevalência da visão oficial, banindo qualquer questionamento antes de qualquer exame e ponderação. Transformar uma possível intoxicação alimentar num tumor devastador de cura quase impossível é um gancho para forçar o milagre de Madre Teresa de Calcutá, um mito religioso que se revelou uma farsa.

O mais engraçado é que Madre Teresa vai virar santa dependendo de um segundo "milagre". O primeiro se revelou uma farsa, já que a indiana Monica Besra diagnosticada com câncer em 2002, conforme revelou o próprio marido da paciente, Selku Murmu, se curou da doença porque cumpriu rigorosamente todo o tratamento para combater o tumor, sobretudo tomando os remédios adequados e cumprindo recomendações para a saúde.

Madre Teresa precisava ter dois milagres confirmados para ser considerada santa. Teve o primeiro deles largamente contestado, com provas consistentes. E talvez seja isso que faça com que a Igreja Católica queira exercer monopólio de fontes, para evitar que, considerando outras fontes de informação, o "milagre" ocorrido no Brasil possa ser questionado como foi o de Monica Besra.

O mito de Madre Teresa de Calcutá foi construído por Malcolm Muggeridge, jornalista católico da BBC, que criou um documentário chamado Algo Bonito para Deus (Something Beautiful for God), em 1969. Nele foram inseridos os conhecidos elementos do marketing religioso, que criou paradigmas que agradaram multidões, sobretudo no Brasil.

Dá para perceber que tanto a Rede Globo quanto o "movimento espírita" adoram Madre Teresa. Ela é praticamente adotada pelos "espíritas" como se também fosse da doutrina brasileira, mesmo que ela tenha sido albanesa e atuado num bairro de Calcutá, na Índia.

O próprio mito de Francisco Cândido Xavier foi reciclado pela Rede Globo nos moldes que Muggeridge fez com Madre Teresa. Todos os elementos publicitários de "filantropia", observados em Madre Teresa, foram adotados de forma explícita para Chico Xavier, desde carregar bebê no colo, passar a mão na cabeça de um idoso doente e observar crianças tomando sopa no almoço.

Além disso, Madre Teresa e Chico Xavier foram adeptos da Teologia do Sofrimento, a macabra corrente medieval da Igreja Católica que faz apologia ao sofrimento humano como processo de "purificação da alma", uma espécie de "holocausto do bem".

É através da Teologia do Sofrimento que se investigou o porquê de tantos doentes e miseráveis alojados nas casas dirigidas por Madre Teresa serem tão maltratados, tendo péssimo regime alimentar, sendo remediados apenas com paracetamol e aspirina, recebendo injeção de seringas reutilizadas e deixados expostos uns diante dos outros, para o contágio de doenças graves como a Hanseníase.

A madre disse que o sofrimento é um "presente de Deus" e que o mundo teria que "aprender com o sofrimento humano". Chico Xavier não era diferente. Ele pedia para as pessoas que sofressem desgraças fingissem que está tudo bem, sem demonstrar sofrimento para os outros, sem se queixar, sem fazer um questionamento sequer e, de preferência, orando em silêncio para não perturbar o sossego dos algozes.

É sob essa perspectiva cruel e desumana, mas que encanta muitas pessoas pela forma dócil e bonita como se arrumam as palavras do discurso religioso, que faz com que Madre Teresa tenha garantido o caminho da santificação, um processo que esconde interesses comerciais do Vaticano, que envolvem sobretudo parcerias com o mercado turístico, já que as agências de viagens acham maravilhoso que Madre Teresa seja uma santa. É dinheiro que está em jogo no processo de santificação.

E a grande mídia brasileira, capaz de desmoralizar uma presidenta honesta por coisa nenhuma, também é capaz de santificar uma freira que deixava doentes expostos uns aos outros, contagiando doenças e sendo infectados por seringas reutilizadas, além de mal alimentados e muito mal assistidos.

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