quinta-feira, 7 de abril de 2016

Um poema que, com certeza, não foi de Auta de Souza


É leviano e pernicioso o processo de apropriação, pelo "movimento espírita", dos nomes de pessoas falecidas para forjar mensagens que não condizem aos seus estilos pessoais, fraudes que são muito mal-disfarçadas pelo propagandismo religioso, até pela ideia de que ninguém teria coragem de questionar a veracidade de "palavras de amor" e "mensagens de fraternidade e paz".

Vítimas conhecidas são Humberto de Campos, Augusto dos Anjos, Olavo Bilac e tantos outros. Num meio termo entre o anonimato e a fama, temos a professora Irma de Castro Rocha, a Meimei, que nunca foi famosa em seu tempo, se transformando em "pregadora espírita" em livros que ela de fato nunca escreveria, por mais que ela tivesse sido religiosa fervorosa.

Há o caso de Auta de Souza, a jovem poetisa nascida no Rio Grande do Norte e que só viveu 25 anos de idade. Negra lindíssima, ela tinha um estilo peculiar de poesia, com aquele lirismo meigo e infantil de menina sensível, que saltava aos nossos olhos através de seus versos belíssimos.

No entanto, o oportunismo do pastichador de livros, Francisco Cândido Xavier, fez com que as tentativas de resgatar do esquecimento a jovem autora potiguar se corrompessem com uma suposta obra espiritual que, nem de longe, lembrava a poesia meiga da garota. Por outro lado, em muitos momentos se observa claramente o estilo de Chico Xavier.

A título de comparação, publicamos aqui, primeiro, o suposto poema espiritual, "Lágrimas", publicado em 19 de agosto de 1960 em Uberaba, cidade do Triângulo Mineiro que já havia se tornado, no ano anterior, a terra adotiva de Chico Xavier, praticamente desmoralizado em Pedro Leopoldo por causa do sobrinho Amauri Xavier Pena, depois misteriosamente falecido.

Para comparação, mostramos um poema deixado pela autora, "No Jardim das Oliveiras", de 07 de abril de 1898, só para citar um tema religioso e mostrar o quanto, apesar das semelhanças à primeira vista, o poema "espiritual" não condiz ao estilo do poema que a autora publicou em vida, até porque o poema da autora é bem mais leve de se ler do que o "pesado" poema "mediúnico", que, aliás, é puramente o mesmo estilo de Chico Xavier que conhecemos por suas frases.

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LÁGRIMAS

Atribuído a Auta de Souza - Divulgado por Francisco Cândido Xavier em Uberaba, 19 de agosto de 1960.
  
Benditas sejam, torturando embora,
As lágrimas que a vida transfigura
Na fonte generosa, viva e pura
De perfeição e luz para quem chora.

Lírios e estrelas de celeste alvura,
Entre as sombras da mágoa que aprimora,
Rolam do coração, lembrando a aurora
No imenso caos da imensa noite escura!…

Benditas sejam! Lágrimas divinas
Como flores brilhando sobre as ruínas,
Que a provação estende, áspera e franca…

Mas, acima da bênção que as alveja,
Ante a glória do amor, bendita seja
A mão da caridade que as estanca!

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NO JARDIM DAS OLIVEIRAS

Auta de Souza - 07.04.1898

“Minh’alma é triste até à morte...” Doce, 
Jesus falou... E o Nazareno santo 
Chorava, como se a su’alma fosse 
Um mar imenso de amargura e pranto. 

Depois, silencioso, ele afastou-se 
E foi rezar no mais sombrio canto. 
Seu grande olhar formoso iluminou-se 
Fitando o etéreo e estrelejado manto. 

“Pai, tem piedade...” E sua vez plangente 
Tremia, enquanto pelas trevas mudas 
Baixava manso o triste olhar dolente. 

Pobre Jesus! Como n’um sonho via: 
Em cada sombra a traição de Judas, 
Em cada estrela os olhos de Maria!

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