Mediunidade, no Brasil, tornou-se um processo falido. Denúncias imensas de fraudes, prática de "leitura fria" (espécie de entrevista na qual o entrevistador, forjando um tom intimista, colhe informações sutis do entrevistado), mancham a prática, em várias modalidades.
Como dar legitimidade a processos supostamente mediúnicos se os resultados mostram sempre o estilo do "médium", por mais que ele tente imitar o estilo do suposto espírito, e fazem sempre o mesmo apelo igrejista, podendo ser o espírito de um pai-de-santo ou de um filósofo ateu, mas sempre evocando mensagens religiosas?
De vez em quando, os "médiuns" brasileiros, que, diferente dos médiuns dos tempos de Allan Kardec, tornam-se estrelas, às vezes centros das atenções (o que vale a denominação anti-médium, porque perde o sentido intermediário da palavra "médium") e "donos" dos mortos, o que entra em choque com muitas das recomendações do Conselho Universal dos Ensinos dos Espíritos.
O Brasil, que não abriu os olhos para as irregularidades do "movimento espírita" que, em muitos aspectos, é mais corrupto do que as supostas trapaças do Partido dos Trabalhadores e mais traiçoeiro que as seitas neopentecostais (como a Igreja Universal do Reino de Deus), não consegue ver sentido sequer nas denúncias mais lógicas e consistentes.
E aí vemos como é fácil explorar a ignorância e a incompreensão das pessoas e forjar casos que inspiram muita comoção e fascinação pela cegueira que é a fé religiosa e o deslumbramento místico. E como é fácil usar o "espiritismo" para enganar pessoas e sair imune e impune dessa.
Um caso mais recente de apropriação de um espírito falecido é o do "médium" carioca Geralcino Gomes, que alega "receber" o espírito do jovem sambista Noel Rosa (1910-1937) e que, lançando o livro Cordas, Cores e Noel, alega que Noel Rosa "irá reencarnar" no Brasil.
Este livro é um "trabalho solo" do suposto espírito de Noel Rosa, que como toda personalidade usurpada pelo "espiritismo", aparece com apelo igrejista bastante carregado, não raro com um forte ranço católico, que nem mesmo católicos devotos teriam interesse em expressar se fossem espíritos do além.
Ver que transformar mortos em "garotos-propaganda" da fé religiosa é constrangedor e preocupante, e mostra o quanto os "médiuns" contrariam severamente as condições trazidas pelo pensamento de Allan Kardec, quando se tornam estrelas e viram "donos dos mortos", reduzindo os espíritos do além a meros propagandistas da religião.
O suposto "Noel Rosa" apareceu no livro Um Sonho...Natal Todos os Dias, que Geralcino lançou atribuindo a autores diversos. Reproduzimos a mensagem atribuída a ele, intitulada "Falando com Jesus", em que o famoso ativista é tratado como se fosse o "Deus Filho" dos católicos, embora não haja a famosa "confusão" de Deus e Jesus.
Nela, é feita uma "oração" que, em estilo, em nada lembra a poesia de Noel Rosa e o tom infantilizado soa bastante estranho, assim como o igrejismo extremado e uma caridade "qualquer nota" (não falamos em partituras) que, por pedantismo, cita o bairro carioca de Vila Isabel só para forçar o vínculo ao "poeta da Vila".
Essa oração não é um poema, mas um texto em prosa, e ele realmente não lembra o estilo de Noel. A título de comparação, confrontamos o texto trazido por Geralcino Gomes e um poema que Noel Rosa deixou em sua brevíssima e vida, mas de produtiva e expressiva carreira.
"Feitio de Oração", gravado por Beth Carvalho - só para citar um nome contemporâneo - mostra que Noel Rosa é muito diferente do tolo igrejista que "falava com Jesus" e cujo vídeo apresenta uma narrativa piegas, com locutora e locutor em vozes adocicadas lendo um texto inócuo, tolo, sem qualquer relação com o estilo original do sambista carioca.
Antes de mostrarmos as duas mensagens, vale concluir que, se Noel Rosa iria reencarnar, com certeza será num mundo bem mais evoluído que o da Terra, e bem mais do que o nosso atrasado e retrógrado Brasil. Se bem que Noel Rosa deve ter reencarnado há um bom tempo depois que morreu, e foi muito longe daqui.
Personalidade evoluída de talento bastante peculiar, Noel Rosa, assim que faleceu doente, em 1937, sem chegar a completar 27 anos de idade, ele nunca teria se manifesto através de "espírita" algum no Brasil. Ele não teria se identificado com as sintonias confusas, irregulares e medíocres da doutrina igrejista, mais preparada para evocar o espírito de um MC Daleste do que qualquer figura séria da música brasileira.
Concluímos que, com toda certeza, Noel Rosa não se manifestou em Geralcino Gomes. E que a mensagem atribuída ao seu espírito não tem a ver com o estilo do saudoso sambista. Constatamos isso sem raiva, nem rancor, mas com a perplexidade de ver como é fácil falsificar as coisas sob o manto da "boa palavra" e da "caridade" e sair impune.
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FALANDO COM JESUS
Por Geralcino Gomes - Do livro Um Sonho...Natal Todos os Dias, de vários autores. Texto atribuído ao espírito de Noel Rosa
- Jesus, eu gostaria de oferecer um presente ao Senhor!
Por isso me ajoelho aqui neste cantinho escondido da pracinha, para rezar pedindo inspiração e esclarecimentos.
Perdoe dirigir ao Senhor assim, mas tenho duas dúvidas.
A primeira, o que doar a Jesus?
Olhe, tenho algum dinheirinho guardado.
Quem sabe posso ajudar oferecendo alguma coisa que fale ao seu coração?
A segunda dúvida é: como fazer chegar ao Senhor o presente?
Quem sabe eu coloco aqui neste cantinho, fecho os olhos e o Senhor dá um jeito de um anjo carregar até aí o presente?
Ah, muito obrigado por me escutar. Olha, eu volto amanhã e fico quietinho para esperar sua resposta, está bem? Até amanhã.
- Filho do coração, aceito seu presente, mas o que quero é que você considere todo dia um Natal, porque o Sol irá brilhar sempre presenteando ao mundo luz e calor. Procure doar, em meu nome, carinho, paciência, calma, palavras úteis, silêncio quando necessário, e muito amor.
Meus mensageiros não serão anjos, e sim os caídos dos caminhos, das ruas de Vila Isabel, crianças, adultos, sofridos. Caridade para com elas, boas palavras, tempo para escutá-las e - por que não? - para também sorrirem ao seu lado.
Viu, filho, como quero pouco. Faças por mim e observe que tudo ficará mais fluído por onde você costuma caminhar.
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Feitio de Oração
Composição de Noel Rosa
Quem acha vive se perdendo
Por isso agora eu vou me defendendo
Da dor tão cruel desta saudade
Que por infelicidade
Meu pobre peito invade
Por isso agora lá na penha
Vou mandar minha morena
Pra cantar com satisfação
E com harmonia
Esta triste melodia
Que é meu samba em feito de oração
Batuque é um privilégio
Ninguém aprende samba no colégio
Sambar é chorar de alegria
É sorrir de nostalgia
Dentro da melodia
Por isso agora lá na penha
Eu vou mandar minha morena
Pra cantar com satisfação
E com harmonia
Esta triste melodia
Que é meu samba em feito de oração
Batuque é um privilégio
Ninguém aprende samba no colégio
Sambar é chorar de alegria
É sorrir de nostalgia
Dentro da melodia
Por isso agora lá na penha
Eu vou mandar minha morena
Pra cantar com satisfação
E com harmonia
Esta triste melodia
Que é meu samba em feito de oração
O samba na realidade não vem do morro
Nem lá da cidade
E quem suportar uma paixão
Sentirá que o samba então
Nasce do coração
E quem suportar uma paixão
Sentirá que o samba então
Nasce do coração
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