domingo, 4 de outubro de 2015

Modelo de transporte em Curitiba se esgota no Rio de Janeiro

ACIDENTE DE ÔNIBUS NA AV. BRASIL - Só a pintura padronizada desestimula as empresas de ônibus a buscar competitividade, qualidade e responsabilidade na prestação de serviço.

Este mês, o sistema de ônibus do Rio de Janeiro, que desde 2010 vive sua decadência marcada por muitas tragédias, com vários feridos e mortos - entre estes houve até um atleta olímpico e uma produtora da Rede Globo, cada um atropelado pelos ônibus municipais - , enfrenta mais uma experiência dramática, fruto do autoritarismo de políticos e tecnocratas.

O fim das linhas de ligação direta Zona Norte e Zona Sul, vigente desde ontem, que as autoridades anunciaram como projeto para "racionalizar" (?!) e "otimizar" (?!?!?!) o transporte coletivo, causou intensa indignação popular, já que a população da Zona Norte, obrigada a ter que pegar mais de um ônibus para ir à Zona Sul, se sentiu socialmente discriminada.

O secretário de Transporte, Rafael Picciani, tenta em vão desmentir as acusações, como se suas medidas arbitrárias fossem o primor da caridade humana. Indiferente à realidade dos cariocas, ele insiste em dizer que os ônibus "andavam vazios", havia "sobreposição de itinerários" e que apenas 20% dos passageiros dependerão de baldeação. Nem Pinóquio mentiu tanto.

Há quem aposte que o secretário entende mais de "aécioporto" do que de ônibus. De fato, Rafael Picciani nunca andou de ônibus na vida. Em 2014, ele apoiou a campanha presidencial de Aécio Neves (PSDB-MG), conhecido por construir aeroporto particular usando dinheiro público. Rafael deve ter visto jogos eletrônicos demais no computador para apresentar "conclusões" e "pareceres" que nada têm a ver com a realidade dos cariocas e suas ruas congestionadas.

O PMDB carioca, do qual Picciani faz parte, é conhecido por seu juízo de valor fora da realidade e de sua atual linha autoritária, nacionalmente conhecida através do deputado Eduardo Cunha, mas compartilhada pelo "democrático" grupo que governa o Estado e a cidade do Rio de Janeiro. Eduardo Paes atropelou a legalidade quando, entre outras medidas, anunciou a pintura padronizada nos ônibus, através da licitação. O primeiro erro já começava aí.

Afinal, a Lei de Licitações na verdade nunca defendeu a adoção de pintura única para diferentes empresas de ônibus e tem até artigos que a contrariam implicitamente, pois a medida contraria o interesse público por confundir os passageiros e, além do mais, não dá para entender um processo licitatório que, em nome da transparência, faz justamente o contrário, escondendo as empresas de ônibus sob uma mesma identidade visual.

Isso fez com que as empresas, impedidas de mostrar sua identidade visual aos passageiros - o que seria uma salutar relação de consumo, permitindo aos passageiros diferenciar uma empresa de ônibus boa da ruim - , acabam piorando os serviços, o que influiu muito no sucateamento de frotas que se observa até em empresas antes consideradas excelentes, como Tijuquinha, Real, Matias e Transurb.

A pintura padronizada, que além de forçar os passageiros a compensar a confusão entre um ônibus e outro - o Matias da 232 para o Lins tem a mesma pintura da Vila Real da 362 para Honório Gurgel - com a "sopinha de números", tentando ver a diferença de um D53509 da Campo Grande e um D58509 da Bangu, apenas puxou uma série de medidas autoritárias e nada benéficas à população.

Veio nesse "BRT da mobilidade desgovernada" a dupla função do motorista-cobrador, que criou uma sobrecarga profissional na já estressante profissão de motorista, o que, somando fatores diversos como desgaste psicológico e trabalho opressivo com a cobrança de passagens, causa os acidentes que deixam uma média mensal de 30 passageiros feridos e já deixou vários mortos.

Além disso, veio a mutilação de itinerários de ônibus para criar o modismo de "alimentadoras" a qualquer preço, feitas sem critério. Linhas com itinerário exclusivo, sem concorrência de trajetos, como 465 Cascadura / Gávea e 952 Penha / Praça Seca, e linhas tradicionais como 676 Méier / Penha e 910 Bananal / Madureira, foram extintas e substituídas por percursos reduzidos.

E é isso que vai afetar a ligação Zona Norte - Zona Sul, cujas linhas se limitaram a ter ponto final na Candelária, sobrecarregando o já confuso amontoado de linhas municipais e intermunicipais e suas filas misturadas. Há 50 anos a Candelária não era adotada como fim de linha de vários trajetos, mas hoje a coisa retornou da forma mais abusiva e caótica possível.

A linha 474 tornou-se símbolo dessa tragédia anunciada, de ruas congestionadas com mais carros e menos ônibus, BRTs superlotados que se destinam a levar 200 passageiros, mas cada um tem demanda dez vezes maior, porque uma dessas casualidades da vida surgiu juntamente com a medida imposta pela Secretaria Municipal de Transportes (SMTR), que centralizou seu poder com o "novo sistema de ônibus" implantado há 50 anos.

Isso porque, enquanto o secretário de Transportes, Rafael Picciani, e o subsecretário de Planejamento, o tecnocrata Alexandre Sansão, anunciaram a medida "racionalizadora", policiais prenderam jovens inocentes vindos do Jacarezinho que viajavam de ônibus para a Zona Sul e estavam apenas sem documentos.

Isso provocou uma revolta popular que deu em arrastões, principalmente quando pitboys de Ipanema e milicianos vindos não se sabe de onde decidiram reprimir as classes populares que pacificamente frequentaram as praias cariocas. Os pitboys provocavam os jovens pobres e, nas brigas, arrastões são feitos. Os milicianos arrombavam janelas dos ônibus para tirar passageiros e agredi-los.

Temendo perder votos na eleição de 2016, o PMDB carioca permitiu que a linha 474 só circulasse nos sábados, domingos e feriados. Solução meramente paliativa, e insuficiente, porque todo o esquema de mudanças e seus prejuízos estão praticamente mantidos e a medida está mais para evitar que a demanda da 474 se transferisse para os BRTs do ramal Centro X Zona Sul.

Todos esses episódios trágicos e dramáticos - nos últimos dias um ônibus da linha 315 para a Alvorada sofreu um incêndio que por pouco não deixou sequer feridos e um ônibus executivo da Zona Oeste se envolveu com sério acidente junto a 11 veículos, ferindo 27 pessoas - mostram o esgotamento do modelo adotado no Rio em 2010 e que é inspirado em Curitiba.

O próprio Jaime Lerner, arquiteto e antigo político da ditadura militar, com um histórico de improbidade administrativa comparável a Paulo Maluf, criador do projeto curitibano, "planeja" mudanças nas linhas intermunicipais para o Rio de Janeiro, anunciando mais medidas arbitrárias que complicarão a vida dos passageiros em prol da "racionalização" do transporte coletivo.

Seu modelo tecnocrático, em que pese relativos pontos positivos de urbanização de residências e aproveitamento relativo de ideias de sustentabilidade e acessibilidade, se encontra obsoleto, até porque os pontos positivos podem ser aproveitados independentemente da "grife Jaime Lerner".

Licitar empresas de ônibus e esconder as vencedoras na pintura padronizada, em vez de permitir que cada uma tenha sua identidade própria - o que pouparia custos e burocracia com a transferência de ônibus intermunicipais para municipais, já que várias empresas seguem esse esquema - , e obrigar motoristas a cobrar passagens, são medidas que não fazem sentido, não trazem funcionalidade e provaram prejudicar a sociedade, a transparência e a legalidade.

Além disso, uma mobilidade urbana não se faz reduzindo percursos, sobretudo de linhas sem concorrentes como a 952 Penha / Praça Seca e a funcional 465 Cascadura / Gávea, que levava os universitários de Madureira para a proximidade da PUC da Gávea,  mas firmando e reforçando esses trajetos.

Sem conhecer realmente o trânsito congestionado do Rio de Janeiro - é só ir para Laranjeiras no decorrer da tarde, mesmo antes do horário de pico, para sentir o drama - , as autoridades queriam transformar um trecho da Av. Rio Branco num grande calçadão, complicando o já confuso tráfego carioca. Desistiram porque seria apelar demais, diante de tantos malefícios causados no sistema de ônibus e na mobilidade urbana.

O aspecto mais grave é que esse modelo de transporte coletivo de 2010 mostrou o egoísmo e o caráter antissocial de seus responsáveis ou mesmo de seus seguidores. Eduardo Paes ofendeu descendentes de portugueses, quando tentou justificar a pintura padronizada nos ônibus. Rafael Picciani e Alexandre Sansão, por sua vez, não conseguiram esconder a discriminação social que está por trás do projeto de dificultar o povo da Zona Norte a ter acesso por ônibus à Zona Sul.

Mas o lado antissocial ocorreu até mesmo quando, nas mídias sociais, um busólogo da Baixada Fluminense, frustrado por não ter a projeção política garantida por um projeto educacional que ele fazia, teve um surto neurótico e passou a brigar com busólogos que não pensavam igual a ele. O encrenqueiro já havia feito comentários racistas contra um busólogo negro.

O busólogo encrenqueiro, que defendia Eduardo Paes, o DETRO e até empresas de ônibus ruins e até criou blogue para ofender desafetos, quis agredir quem queria e brigou com quem não queria. Há boatos que até a "máfia das vans" está atrás dele, por achar que a busologia-ostentação do rapaz seja um suposto plano de "tomar o mercado" rival, só porque o busólogo encrenqueiro ia muito às cidades fora de seu domicílio, principalmente quando era para ameaçar desafetos.

Só do lado desses adeptos e mentores do sistema de ônibus de 2010 dá para perceber o caráter retrógrado de suas mentes e pontos de vista. O povo, para eles, é tratado como gado. Os tecnocratas não conseguem perceber sequer os congestionamentos nas ruas, e criam uma "mobilidade urbana" de conto-de-fadas, trazida pelas fórmulas prontas que Jaime Lerner havia adotado quando a ditadura militar estava no auge.

E aí vem a ligação Zona Norte - Zona Sul, de forma indireta pela incômoda baldeação de BRTs lotados e terminais caóticos. Se "racionalizar" o sistema de ônibus é assim e retirar ônibus das ruas é uma forma de "facilitar o fluxo de veículos", então Picciani e Sansão devem estar brincando demais com jogos eletrônicos, porque a visão deles é completamente fora da realidade.

"Eles fazem o que querem com a gente", disse uma moradora da Zona Norte que pega ônibus para Botafogo para trabalhar e depois pega outro para a Zona Norte para a faculdade, em reportagem para a TV Bandeirantes. "Eles tratam o povo como gado", disse uma passageira entrevistada pela TV Globo, na estação do BRT da Alvorada, na ocasião da estreia do Rock In Rio 2015.

Essas declarações são apenas uma minúscula amostra de como a população está revoltada com as autoridades. Revoltada com a pintura padronizada que fez muita gente pegar ônibus errado. Revoltada com os motoristas que cobram passagem e, sobrecarregados com o controle da direção e do troco, causam acidentes que levam muitos aos hospitais. Revoltada com os ônibus superlotados e com a baldeação que perde muito tempo e esgota a validade do pouco confiável Bilhete Único.

Toda essa revolta é uma realidade e mostra que o "modelo Jaime Lerner" está cavando o seu túmulo na cidade do Rio de Janeiro. Tardiamente empurrado para cidades como Recife e Florianópolis (que já sentem o prejuízo dos erros cometidos), o modelo se esgota, apesar das tentativas vãs de "reinventá-lo", trocando o design dos ônibus padronizados, criando pistas de BRT aqui e ali e até apelando para inutilidades como botar TV e sinal de Wi-Fi nos ônibus.

O "modelo Jaime Lerner" está obsoleto. É o que se pode afirmar, diante da realidade trágica que se vê nas ruas. A "mobilidade urbana" de escritórios e a "racionalização" do transporte através de jogos eletrônicos e simulacros da realidade virtual e a "cidadania" de computação gráfica não trazem mais respostas para a população.

Muito pelo contrário, esse modelo está esgotado, datado, ultrapassado, remetendo a uma visão "futurista" mais apropriada do regime militar e dos generais com mania de tecnocracia. Jaime Lerner não é muito diferente de um Roberto Campos. Que diferença faz o arquiteto que queria menos ônibus nas ruas e o economista que queria salários menores?

Durante anos tínhamos que acreditar que essas visões autoritárias eram "benéficas para a população", e confiar na demagogia de tecnocratas que prometiam "estudar e resolver futuros problemas". Só que tudo isso é desculpa. A crise do "modelo Lerner" não está só em "alguns aspectos" ou na suposta "má condução" de suas ideias. Está no conjunto da obra. Era uma "mobilidade urbana" mais própria para o ano de 1974 da Era Médici do que para os novos tempos de hoje.

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