terça-feira, 29 de setembro de 2015
Quando se é forçado a ser feliz num país complicado
Nas mídias sociais, as pessoas publicam, felizes, suas fotos com os amigos, sobretudo com os chamados selfies, no Facebook, e dão curtidas para vídeos que sejam engraçados e hilários, ainda que tivessem alguma crítica social. No entanto, não estão muito inclinados a contestar e a agir contra as irregularidades e problemas graves que existem na sociedade.
Nas ruas, jovens parecem felizes da vida contando piadas e falando de situações engraçadas, como se a vida fosse descompromissada e a crise não estivesse sequer à volta deles. Nos bares, adultos comentam sobre os gravíssimos problemas do cotidiano e os retrocessos que ocorrem no país como se fossem uma piada para ficarem rindo com sarcástica ironia.
Nas rádios, a chamada "música popular" é geralmente tola e malfeita. Na literatura, prevalecem os livros de blogueiros de moda e humor, para não dizer biografias de cachorros com nome de roqueiros e livros para colorir num mercado em que se exige mais hábitos de leitura, e não "pintura para aliviar o estresse".
No cinema, cada vez mais se multiplicam comédias debiloides que imitam a fórmula dos EUA. E, dos EUA também, vêm as franquias de seriados infantis que se tornam peças teatrais que cada vez mais dominantes no mercado teatral, juntamente com comédias adultas que fazem o cenário da dramaturgia dos palcos retroceder, só que de forma piorada, aos tempos do eurocêntrico Teatro Brasileiro de Comédia, quando temáticas brasileiras eram desprezadas pelo setor.
O cenário sócio-cultural brasileiro está muito pior do que o de 1965. Nesse ano, quando a ditadura militar decidiu que não era mais um governo provisório feito apenas para completar o período de mandato de João Goulart, expulso do poder no ano anterior, e se firmava por tempo indeterminado, frustrando para sempre os desejos de Juscelino Kubitschek e Carlos Lacerda disputarem a Presidência da República, o povo brasileiro tinha maior consciência crítica e mobilizadora.
Nos círculos sociais, como bares, salas de universidades ou mesmo nos bancos em calçadões nas praias, as pessoas questionavam sobre o que os generais realmente queriam naquele país de 50 anos atrás. Se, na imprensa, até as marchinhas - cujo autor em ascensão é o hoje conhecido João Roberto Kelly - eram discutidas por especialistas sobre seu nível de alienação cultural.
Era uma época, no entanto, que a ditadura, não bastasse ter declarado que "veio pra ficar", desfazendo a promessa do general Castelo Branco que "só cumpriria" o restante do mandato de Jango, começava a pôr em prática a "doutrina de segurança nacional", ideologia de censura e repressão que o general Golbery do Couto e Silva já ensinava na Escola Superior de Guerra, nos anos 1950.
Golbery era um dos artífices do golpe militar e a censura e repressão já aconteciam desde os primeiros meses de 1964 - a revista O Pif-Paf, de Millôr Fernandes, foi fechada por ordem dos generais, já naquele ano - , mas ela se intensificou depois que foi decretado o quinto Ato Institucional, no final de 1968.
Se naqueles tempos o pessoal discutia e, em 1966, com os estudantes reagindo com intensos protestos contra a decisão do ministro da Educação, Flávio Suplicy de Lacerda, em criar uma entidade estudantil subordinada à ditadura militar e substituta da UNE, e impor uma reforma educacional que transformou as faculdades em meras "oficinas profissionais" e já tinha um plano de privatizar as universidades públicas, por que hoje as pessoas andam tão passivas?
Ninguém pode contestar amplamente os problemas da sociedade. Ele ganha fama de "chato", "arredio", "pessimista", e chega mesmo a perder amigos por isso. E olha que o Brasil passou por sucessivos retrocessos nos últimos anos, sob desculpas de cunho moralista ou econômico, para não dizer, durante a ditadura, dos princípios de "segurança nacional".
As pessoas se acostumaram a cada retrocesso, que ia aos poucos acontecendo no Brasil de 1964 até hoje, que o máximo que as pessoas veem na Internet são vídeocassetadas em que muitos riem felizes ao ver uma sogra de algum anônimo, obesa escorregar na hora de ir para a piscina. Isso quando as pessoas não se decidem a "ler" livros para colorir ou levar seus filhos a ver peças teatrais com as franquias da Disney.
Para piorar, mesmo os espaços culturais alternativos já se comprazem de seu isolamento social. Se em 1965 ainda se podia apostar na MPB pós-Bossa Nova e de protesto de Edu Lobo, Chico Buarque e Sérgio Ricardo na hoje conhecida TV aberta, os espaços de MPB autêntica de hoje se "maçonizam", num processo de feudalização moderna da chamada Idade Mídia.
Se, no "mundo normal", veículos midiáticos como a Rede Globo, Multishow, Rádio Cidade (RJ), SBT e revista Veja criam estereótipos diversos para as classes populares e os jovens diversos, alternativos e emepebistas aceitam tudo isso ficando isolados nas suas "maçonarias" modernas de webradios e programas musicais de canais legislativos de TV.
A valorização exagerada da cultura alternativa como um espaço sem visibilidade, com pessoas falando apenas consigo mesmas enquanto caricaturas são difundidas abertamente para o grande público, é algo estarrecedor, embora contestar esse triste cenário é ser "arredio", "antissocial" e "chato".
Tínhamos um Edu Lobo cantando para o grande público na TV Record. A Fluminense FM levou a Legião Urbana para o gosto de uma geração inteira. Mas hoje um novo Edu Lobo fica isolado em programas de fim de noite na TV Senado enquanto uma FM O Dia da vida transforma os chamados "pagodeiros românticos" em caricaturas grosseiras e patéticas de MPB. E um novo Renato Russo fala para meia-dúzia de internautas que se interessam em ouvir a pouco badalada webradio de rock.
As pessoas se conformam com as coisas. Caricaturas e estereótipos prevalecem, cada vez baixando a qualidade de vida e reduzindo as multidões a um rebanho de paródias de si mesmas. Quem deveria reagir a isso também se conforma, questionando menos e apenas "falando mal pelas costas", enquanto se contenta com seus redutos que, antes eram trincheiras, hoje mais parecem abrigos anti-aéreos.
Ninguém mais contesta com firmeza e visibilidade. Quem tem visibilidade só consegue reafirmar o "estabelecido" em sucessivos retrocessos. Quem não tem baixa a cabeça e se contenta com os espaços isolados da mídia e do mercado, para ele e seu grupo de concordantes falarem para si mesmos. Quem não concorda com a "Idade Média" é só montar uma "maçonaria" ou criar seu "feudo".
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