segunda-feira, 22 de junho de 2015

O conto religioso de Humberto de Campos


Por essas ironias que o tempo traz com os desdobramentos surreais de certas ocasiões, um conto religioso de Humberto de Campos acabou representando, postumamente e com as mudanças de contextos, uma grande pegadinha para os seguidores de Chico Xavier.

Sabe-se que Chico Xavier tornou-se o único indivíduo, no Brasil, que não só foi autorizado a se apropriar do legado de um autor morto como a estabelecer vínculo ideológico sobre ele, o que significa que o anti-médium mineiro tornou-se praticamente "dono" do legado de Humberto de Campos.

Humberto tinha uma prosa de temáticas laicas, de linguagem fluente e simples, culta sem deixar de ser informal, com suas metáforas e ironias linguísticas. Mas eis que aparece um conto intitulado "Jesus" que faz bater os corações dos chiquistas.

"Sim! É ele! É ele! Bem feito, os que acusam Chico de ter criado um Humberto de Campos diferente! O espírito é ele mesmo! Sim, é ele!", apressam-se, em histeria que teria feito o referido autor maranhense cair em gargalhadas, os chiquistas que acham que o "espírito Humberto" nunca iria fugir do que Humberto havia sido em vida.

Só que a pegadinha literária chama a atenção por dois aspectos. Um, porque Humberto colocou o conto "Jesus" num livro intitulado O Monstro e Outros Contos, de 1932, o que soa, para os padrões da devoção religiosa, extremamente desrespeitoso. Curiosamente, foi o livro que Humberto lançou quando resenhou o Parnaso de Além-Túmulo organizado pelo seu futuro obsessor Chico Xavier.

Outro aspecto é porque o desfecho do referido conto "Jesus" é frustrante, para aqueles que pensam em ver Jesus como o cavaleiro alado a conduzir uma simples nação como o Brasil à condição de supremacia planetária e, talvez, universal.

O conto também soa como uma crítica de que o mundo adulto também possui as suas fantasias místicas, o que poderia muito bem soar como um puxão de orelha adiantado para aqueles que, décadas depois, só conhecem Humberto de Campos sob a sombra de Chico Xavier.

Ver que a tristeza de Jesus narrada por Humberto de Campos se expressa simplesmente pela proibição familiar de que ele brincasse com outras crianças é decepcionante para os chiquistas. Eis o conto, reproduzido abaixo:

JESUS

Por Humberto de Campos - Livro O Monstro e Outros Contos, 1932.

A casa de José, o carpinteiro, em Nazaré, ficava à margem do caminho que leva a Tiberíades. Pequena e humilde, mais humilde parecia, ainda, pela ancianidade, e por não ser possível ao dono reconstruí-la. Edificada por Jacó, primogênito de Matran, tornara-se, por morte deste, propriedade do esposo de Maria, filha de Ana, da casa de Davi. E como o carpinteiro já se encontrasse velho e alquebrado de forças, ia deixando que o casebre se desmoronasse, açoitado pelos grandes ventos que sopravam no verão, das bandas do golfo de Caifa, e no inverno, da alta cordilheira que orna o país de Sichen. Sem cercas que a defendessem, era a casa rodeada de limoeiros, que embalsamavam o ar, e que a afogavam, com a suas frondes de um verde escuro, como punhados de mangericão em torno de uma rosa fanada.

Era à sombra de um desses limoeiros José trabalhava, quando fazia bom tempo, manejando, trêmulo, o seu serrote e a plaina primitiva. E era sob a copa de todos os outros que brincavam, a manhã toda, e a tarde inteira, as crianças das casas vizinhas. Atraídas para ali pela frescura do local, vinham elas, isoladamente, ou duas a duas, ou três a três, com o seu perfil judaico, os olhos muito vivos e chegados um ao outro, para as correrias habituais. Trazia-as, muitas vezes, João, filho de Zacarias, antigo sacerdote do Templo, em Jerusalém. O senhor, entre elas, da casa e dos limoeiros, era, porém, Jesus, filho do carpinteiro, mais moço do que João quase um ano, e que era ainda seu parente, pois que Maria, esposa de José, e Isabel, esposa do velho sacerdote, eram primas e, apesar da diferença de idade, amigas e confidentes.

As duas famílias, a de Zacarias como a do carpinteiro, traziam no espírito, constantemente, duas preocupações. Segundo a palavra dos Profetas, o povo de Israel teria de cair sob o jugo do estrangeiro, do qual o livraria, no entanto, um grande Rei, que viria disfarçadamente à terra, com o sangue de Davi. A primeira parte das profecias estava cumprida. Os sucessores dos Macabeus haviam ateado a guerra civil na Judeia, e invocado, em certo momento, o auxílio dos romanos, que tinham escolhido entre eles um rei, de nome Herodes, o qual reinava em Jerusalém. E a outra, a mais grave e difícil, parecia, agora, em via de realização.

Efetivamente, nove anos antes, achando-se Zacarias sozinho no Templo, em Jerusalém, incensando o altar, Ouvira um ruído, que lhe parecera o de um grande pássaro em voo. Volvera, lento, o rosto, e estacara, surpreso. Diante dele, vestido de uma túnica diáfana, e que parecia feita com o fumo do turíbulo, estava um mancebo de fisionomia resplandecente, de cujas espáduas saíam grandes asas, e que lhe dissera, em palavras sem mistérios, que sua esposa, Isabel, lhe daria, dentro de alguns meses, um filho varão. Dissera isto, e desaparecera.

Suspeitando dos próprios olhos e dos próprios ouvidos, duvidava o sacerdote do próprio entendimento. Se a esposa, na mocidade, não lhe dera um filho, como lho daria, agora, quando os dois, ele e ela, já se sentiam velhos? Que fazer, pois, naquela emergência? Narrar o sucedido? Contar à mulher, e aos íntimos, a ocorrência do Templo? Melhor seria, talvez, não pecar pela palavra, quem já pecava, incrédulo, pelo pensamento. E desse dia em diante, aguardando os acontecimentos de cada hora, os seus lábios se selaram para o mundo, enquanto a sua alma se descerrava, inteira, para os olhos de Deus.

Semanas depois, o mesmo Enviado aparecia, belo e fulgurante, na casa do carpinteiro, em Nazaré. Levava àquele outro lar uma notícia idêntica. Maria, esposa de José, seria mãe. e o seu filho, neto de Reis, seria o Rei da Judeia.

De acordo com o anunciado, Isabel tivera, em verdade, um filho, que tomou o nome de João. E Maria concebera outro, que era, agora, essa triste criança, de seis anos, sob cujos olhos, de uma estranha doçura, as outras vinham, de longe, brincar à sombra cheirosa dos limoeiros.

Desde o nascimento do menino, em Belém, quando iam àquela cidade para serem recenseados por ordem de Augusto, o carpinteiro e a esposa se haviam convencido dos altos
destinos do filho. Daquele infante dependia, desde aquela hora, a sorte do Povo de Deus. Daí os cuidados de que o rodeavam, a cautela com que o vigiavam dia e noite, o susto com que acompanhavam as suas menores enfermidades. Naquele pequenito moreno, de olhos claros e fisionomia meiga, estava, não apenas o filho único, mas o Rei; não unicamente o rebento miraculoso de um casal que ia desaparecendo sem prole, mas o Salvador de uma raça, prometido pelas profecias do fundo remoto dos séculos.

Jesus havia nascido, entretanto, tão alegre como os outros meninos de Nazaré. Ao se lhe enrijar o pequeno corpo, de linhas modelares e puras, procurara correr, como os outros, e, como os outros, subir às árvores, roubar o ninho aos pássaros, ou banhar-se no lago, quando a família ia a Genezaré ou a Tiberíades. Mal, porém, tentava ia dessas distrações infantis, a mãe acorria aflita, ou acorria o pai, preocupado, detendo-lhe o gesto ou o desejo. E essa diferença de tratamento acordava-lhe dúvidas no espírito e no coração. Por que, sendo o mundo tão vasto, e a vida tão boa, só lhe não cabia, a ele, a alegria de ser livre como as crianças? Aquelas ondas cariciosas do lago, e aqueles ninhos de rouxinol dos olivais, teriam sido feitos unicamente para Mateus, filho de Marta, para Barnabé, filho de Manassés, para Eleazer, filho de Josué, ou, mesmo, para João, seu primo, tão violento que só procurava brinquedos de guerra, em que sempre saía vencedor? Por que, ainda, a curiosidade de toda a gente, em torno da sua pessoa: o sorriso de zombaria de uns, ao apontá-lo de passagem, e o respeito comovido de outros, - alguns dos quais chegavam, até, a ajoelhar na poeira dos caminhos para beijar-lhe, chorando, a fímbria grosseira da túnica?

Sob os limoeiros copados, cujas ramas, aqui e ali, roçavam o chão, as crianças brincavam, correndo em algazarra, simulando combates de judeus e romanos. Por cima das ramagens, o céu era todo azul e ouro, e uma brisa fresca soprava, como uma carícia, das bandas do lago. Balouçado por ela, o limoal escrevia em hebraico, aqui e ali, no solo pedregoso, com letras de luz abertas na sombra, pequenos poemas misteriosos. Tudo era, em torno, festivo e jovial. As próprias aves, tontas de luz, cantavam mais alto.

Sentado junto ao muro limoso de um poço, Jesus, ele só, estava triste.

- Pai, - havia pedido, momentos antes, ao carpinteiro, - deixa-me brincar com os outros!

- Não, meu filho; não podes, - respondera, paternal, o ancião, passando a mão trêmula e rude pelos seus cabelos castanhos. - E se caísses, em uma dessas correrias, que seria de nós, e do teu Povo?

Aquelas palavras eram, para ele, um mistério. Que significavam elas? Que Povo era esse, que era seu, e que ele não conhecia?

Os seus olhos, doces, e mansos, encheram-se de sombra. Uma lágrima correu, lenta e límpida, parando aqui e ali, pela sua face morena, vindo deter-se ao canto da boca miúda, pondo, nela, um desagradável gosto de sal.

Jesus de Nazaré começava a sofrer, nesse dia, a tristeza de ter nascido Deus...

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