sábado, 17 de janeiro de 2015

A música brasileira do "Coração do Mundo"


Tão tomado de "erudição" e "bom gosto", o "espiritismo" brasileiro cria um padrão de espiritualidade em que valores conservadores aliados a uma mediocridade sócio-cultural são estimulados e efetivados.

Uma religião que está mais próxima de uma tradução heterodoxa e moderada do Catolicismo medieval do que de uma adaptação brasileira do Espiritismo de Allan Kardec, certamente, se compromete em promover um país não muito transformador que vemos no Brasil.

Defendendo valores morais conservadores, com a mesma energia que o Catolicismo teve até pouco tempo atrás, o "espiritismo" brasileiro também não seria muito progressista em matéria de "cultura brasileira".

O "espiritismo" é tão brega na sua expressão que mistura pieguice sentimental, misticismo esotérico e moralismo religioso sob um verniz de espiritualidade futurista e apreciação da ciência que ela se une aos bregas até mesmo no nome do Padre Manuel da Nobrega, placa de rua que batizou a "cultura" dos cafonas e que remete à famosa encarnação do espírito Emmanuel.

E como essa doutrina atrasada, ainda fundamentada no Catolicismo medieval e nas crenças influenciadas por Jean-Baptiste Roustaing - como a de colocar o homicídio como mal menos grave do que o suicídio - , e com um moralismo que, entre outras coisas, dá uma valorização exagerada e materialista da família, pode influenciar no declínio cultural do Brasil? Muita coisa.

O "espiritismo" brasileiro, como sistema de conhecimentos e de valores, em nenhum momento representou uma alternativa relevante e transformadora diante do Catolicismo propriamente dito e nem das chamadas seitas neopentecostais, tidas como "protestantes", e nem mesmo das crenças evangélicas autênticas.

Muito pelo contrário, se compararmos a pregação de astros como Divaldo Franco e Chico Xavier com as do líder protestante Martim Luther King Jr., os dois perderiam feio diante das lições coerentes e precisas do grande ativista norte-americano assassinado em 1968.

Mesmo assim, o "espiritismo" bate o pé e quer que um Brasil atrasado esteja na vanguarda do mundo ou talvez do Universo e dite seus valores esquizofrênicos para o resto da humanidade, além de promover o "espiritismo" de Chico Xavier e companhia como se fosse a "última palavra" em termos de doutrina filosófica e espiritualista.

Musicalmente, o "espiritismo" se traduz numa valorização de músicas românticas, com apelação religiosa ou com alguma letra "positiva", naquilo que seus líderes e seguidores entendem como "temas edificantes". Tudo sem critério, já que em sua apreciação vale tanto uma canção bonita mas manjada como "Canção da América" como qualquer baboseira de Sullivan & Massadas.

Mas isso não impede que o "astral espírita" que anuncia o Brasil como o "Coração do Mundo" apronte na valorização da cafonice dominante. Até porque, nos circuitos "laicos", o padrão de sociedade desejado pelo "espiritismo" brasileiro dá preferência às baixas manifestações musicais, como o "sertanejo", a axé-music, o "forró eletrônico" e o "funk".

Verificando a "fronteira" entre um conhecido "centro espírita" de Niterói, o Centro Irmã Rosa, e todo um circuito de bares e boates em seu entorno, não é de se surpreender que, fora das "doutrinárias", a "livre" valorização da música brasileira tende a preferir não uma cultura que eleve o espírito, mas aquela que "faz muito sucesso".

Claro, são canções "bonitas" ou "divertidas", do "sertanejo" ao "funk", que "todo mundo gosta". E cujos ídolos são "gente boa", se esforçando em trazer "boas energias" para a plateia. O "espiritismo" cujo astro maior, Chico Xavier, apoiou Fernando Collor, oferece condições de favorecimento e proteção aos ídolos musicais patrocinados pelo "caçador de marajás" e seus aliados.

Tudo a ver. O moralismo "espírita" mais pune os diferenciados do que os errados, protegendo pessoas de índole retrógrada, mas comprometida com o zelo do que as forças conservadoras entendem como "equilíbrio moral". E isso dá para juntar as peças do quebra-cabeça.

As próprias forças políticas, empresariais e midiáticas que promovem a supremacia do conservadorismo sócio-cultural se apoiam nos mesmos valores moralistas religiosos, na defesa da "família" e no combate à "subversão", lançando mão de medidas intimidatórias (como a pistolagem) ou de processos de domesticação sócio-cultural das classes populares.

Daí que, musicalmente, juntando esses interesses com outros comerciais e de outra natureza controladora, mesmo num contexto "laico", essas forças se afinam muito com o "espiritismo", tanto que, na Salvador de Divaldo Franco e José Medrado, a quase totalidade de músicos adeptos ou simpatizantes de sua doutrina vêm justamente da axé-music.

Fora os clássicos já muito manjados da MPB autêntica, como a citada "Canção da América" de Milton Nascimento e Fernando Brant ou "Eu Sei Que Vou Te Amar", de Tom Jobim e Vinícius de Moraes, o "espiritismo" não tem interesse em apreciar a canção brasileira de qualidade, que realmente elevasse o espírito, mas apenas canções "feitas para toda a família".

CHITÃOZINHO & XORORÓ E ALEXANDRE PIRES - ELES TAMBÉM TENTAM TIRAR VANTAGEM COM "PALAVRAS DE AMOR".

É como defender a produção de sucos que valem mais pelo gosto do açúcar do que pelo sabor de sua respectiva fruta. Além disso, o padrão de "liberdade moral" do "espiritismo" brasileiro permite, em contrapartida, que se apresentem às crianças sucessos como "Beijinho no Ombro" e "Segura o Tchan", apenas dentro dos limites "saudáveis" da "moralidade espírita".

Isso para não dizer a canastrice pseudo-sofisticada e pseudo-MPB de nomes da música brega, como Chitãozinho & Xororó, Alexandre Pires, Leonardo, Daniel e Zezé di Camargo & Luciano, além de nomes mais recentes como Luan Santana, Thiaguinho e Cláudia Leitte, que tentam algum "lugar nobre" na Música Popular Brasileira seguindo a mesma cartilha das "palavras de amor".

É a mesma desculpa que faz Chico Xavier ser visto como um "vice-deus" e que, na música brasileira, faz do romantismo um artifício para que muitos canastrões musicais tentem entrar no primeiro time da MPB pela porta dos fundos, ou pela porta da frente, se algum complacente deixar.

Mas como essa "moralidade" é confusa, enérgica demais com quem é diferenciado e elevado, e branda demais com quem comete erros graves, tem tudo a ver a musicalidade brega predominar no país que é anunciado como a "vanguarda da espiritualidade planetária".

Sem representar alternativa real à religiosidade predominante, o "espiritismo" cria condições diversas que propiciam a degradação cultural do país, e não adianta os líderes "espíritas" reclamarem das baixarias do "funk", "sertanejo universitário" e quejandos. O "espiritismo" prometeu remediar a sociedade, mas trouxe doenças ainda piores que refletem na cultura brasileira como um todo.

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